Ocorrência na madrugada desta sexta-feira (16) levanta indícios de ataque em meio a conflito fundiário; comunidade denuncia histórico de violência às margens do rio São Francisco, CPP regional MG/ES acompanha a situação
Texto: CPP-MG/ES com edição da assessoria de comunicação do CPP | Fotos: Arquivo da comunidade
Na madrugada desta sexta-feira (16), um incêndio de grandes proporções atingiu a sede da associação comunitária e a residência de um morador na Comunidade Tradicional Quilombola Pesqueira e Vazanteira de Croatá, localizada no município de Januária, norte de Minas Gerais. A suspeita é de que o fogo tenha sido criminoso. O caso acende um grave alerta sobre a insegurança no território tradicional da comunidade, que aguarda há anos a titulação definitiva de suas terras pela União.
Segundo relato de uma moradora, por volta das 2h da madrugada, ela e seus dois filhos ouviram dois disparos de arma de fogo. Ao saírem para verificar o que havia acontecido, depararam-se com o incêndio e ouviram sons de pessoas no local, além de intensos latidos de cães. Diante do cenário de medo e insegurança, optaram por permanecer em casa, mesmo com a gravidade das chamas.
A Comunidade de Croatá é formada por 33 famílias quilombolas que vivem às margens do rio São Francisco, em área de domínio da União. A comunidade é certificada pela Fundação Cultural Palmares e possui processo de titulação em andamento junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-MG) desde 2016. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) já conta com o relatório antropológico e levantamento das famílias concluídos, mas a morosidade no reconhecimento dos direitos territoriais tem exposto os moradores a situações de violência e vulnerabilidade.
Após o início do incêndio, a moradora acionou a equipe do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) – Regional Minas Gerais e Espírito Santo – e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), que imediatamente mobilizaram o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar e a Polícia Civil.
Enedina Souza dos Santos, moradora da Comunidade Quilombola de Croatá, desabafou sobre a destruição causada pelo incêndio e apontou que o ato foi praticado por pessoas que conheciam a realidade da comunidade. “Isso aqui é pessoal que sabe da caminhada da gente”, afirmou. Segundo ela, os autores sabiam exatamente o que havia no local e agiram com a intenção de prejudicar os trabalhos coletivos e a produção das hortas comunitárias. Enedina lamentou a perda total de materiais essenciais, como mangueiras, roçadeira, motor de puxar água, cama, beliche, colchões e ferramentas agrícolas, destacando que “tudo foi destruído”. Apesar do ataque, reforçou a determinação da comunidade em seguir lutando:
“Mas nós estamos firmes para continuar na luta e resistindo. Um dia a vitória chega!”, assegurou Enedina.
O presidente da Associação, Arnaldo da Silva Vieira, de 68 anos, perdeu toda a documentação pessoal e da entidade e os móveis de sua moradia. Ele não estava no local no momento do incêndio, pois havia dormido na cidade. “Se ele estivesse no barracão dele, o pior teria acontecido”, relata uma das testemunhas do incêndio. Arnaldo já esteve incluído no PPDDH até 2023 e ainda sonha em viver com segurança no território onde nasceu e cresceu.
A Polícia Civil compareceu ao local ainda durante a madrugada para iniciar a perícia e retornaria pela manhã para dar continuidade às investigações. Os peritos constataram que as estruturas da associação e da residência estão comprometidas, com risco iminente de desabamento, motivo pelo qual a área foi interditada. O Boletim de Ocorrência foi lavrado e o Corpo de Bombeiros conseguiu apagar os focos de incêndio.
O caso reforça a urgência da titulação definitiva do território quilombola e a necessidade de medidas eficazes de proteção aos povos e comunidades tradicionais que vivem sob constante ameaça.
Histórico de violência e impunidade
O incêndio ocorrido nesta madrugada não é um caso isolado. A Comunidade Quilombola de Croatá convive há décadas com episódios de violência e violações de direitos. Desde as enchentes de 1979, os moradores enfrentam expulsões forçadas e incêndios criminosos, frequentemente associados à ação de latifundiários interessados em expandir suas propriedades sobre o território tradicional da comunidade.
Nos últimos anos, grileiros têm avançado de forma reiterada sobre as áreas de uso coletivo da comunidade, promovendo desmatamento e queimadas. Apesar das constantes denúncias e da atuação da Polícia Ambiental em ocasiões anteriores, os moradores relatam a ausência de respostas efetivas por parte das autoridades e a continuidade das agressões.
Diante da gravidade e da recorrência dos ataques, a comunidade intensificou os pedidos de atuação da Polícia Federal. Em 2023, foi finalmente instaurado o inquérito IPL 2023.0035486-DPF/MOC/MG, que agora está sob responsabilidade da Polícia Federal e visa identificar e responsabilizar os autores das ações criminosas que ameaçam a integridade física, cultural e territorial da comunidade de Croatá.
Suspeita de represália após avanço na demarcação das terras da União
O ataque registrado nesta madrugada ocorre poucos dias após um importante avanço no processo de demarcação das áreas da União ocupadas tradicionalmente pela Comunidade de Croatá. Em reunião pública realizada no dia 7 de maio de 2025, articulada junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a superintendente da Secretaria do Patrimônio da União em Minas Gerais (SPU/MG), Lorhany Ramos de Almeida, afirmou publicamente o compromisso com a conclusão da demarcação e anunciou que o relatório final será publicado até o dia 31 de maio.
“Estabelecemos um novo prazo de conclusão desses trabalhos para o dia 31 de maio”, declarou a superintendente durante a audiência.
A comunidade e seus apoiadores avaliam que o incêndio pode estar relacionado a esse avanço institucional, configurando uma possível represália de setores contrários à regularização fundiária. Não é a primeira vez que fazendeiros e latifundiários recorrem a pressões políticas e ações violentas para tentar barrar a demarcação do território tradicional. Em 2018, a própria SPU/MG publicou, no Diário Oficial, a convocação para audiências públicas que dariam início ao processo de demarcação das terras da União conforme previsto na Lei nº 13.240/2015 (LMEO). No entanto, as audiências foram suspensas após pressões de grupos ruralistas, e o processo foi paralisado.
* CLIQUE AQUI e veja como foi a audiência em que a superintendente fez esta afirmação
Desde a publicação do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 — que estabelece as regras sobre bens imóveis da União — a demarcação oficial dos territórios vem sendo sistematicamente inviabilizada por interesses privados. A retomada dos trabalhos em 2025 reacendeu esperanças na comunidade, mas também intensificou os riscos para seus integrantes. O novo episódio de violência evidencia o cenário de tensão que acompanha a luta por reconhecimento e permanência no território ancestral.
O trabalho pastoral e a força da fé
Diante da escalada de violência contra os povos das águas, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) regional MG/ES, reafirma seu compromisso com a luta pelos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. A entidade, que há décadas caminha junto aos pescadores, quilombolas, vazanteiros e ribeirinhos, destaca que mesmo diante da injustiça social e das ameaças constantes, é tempo de Esperançar, tempo de fortalecer a caminhada coletiva em defesa da dignidade do Rio São Francisco e de suas “gentes”.
A pastoral tem peregrinado junto aos Povos e Comunidades Tradicionais na luta pela demarcação das áreas da União, com o objetivo de garantir a destinação dessas terras aos seus legítimos guardiões: os povos das águas, que cuidam dos bens da Criação para as gerações presentes e futuras. Diante da violência recorrente no sertão norte-mineiro, o CPP cobra providências urgentes dos órgãos competentes e denuncia que episódios como o ataque à Comunidade de Croatá não são casos isolados, mas expressão de uma ameaça constante à vida e à permanência dos povos tradicionais em seus territórios às margens do rio São Francisco.
Altar em pé, esperança acesa
Entre os escombros deixados pelo fogo, um sinal de fé emocionou os moradores da comunidade: o altar dedicado a São Benedito, padroeiro de Croatá, e a Nossa Senhora Aparecida foi atingido pelas chamas, mas as imagens permaneceram intactas. A cena foi interpretada como símbolo de resistência e proteção espiritual.
“Olha como ficou o altar de São Benedito. Ele protege a nossa Comunidade”, afirmou Arnaldo da Silva Vieira, presidente da associação local.
A permanência das imagens, mesmo diante da destruição ao redor, reacendeu nos moradores e moradoras a esperança de que a luta por justiça e permanência no território ancestral seguirá viva, firme como a fé que os sustenta há gerações.