Lideranças da comunidade tradicional pesqueira e vazanteira de Canabrava (MG) permaneceram mobilizadas em Belo Horizonte e conquistaram, em reunião na ALMG, o compromisso da SPU de publicar o relatório final de demarcação e priorizar a emissão do TAUS para o território até o fim de maio
Texto: Henrique Cavalheiro - Assessoria de Comunicação do CPP
Depois de ocupar a sede da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) em Minas Gerais no dia 6 de maio, a Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira de Canabrava (MG) permaneceu em Belo Horizonte e participou, no dia seguinte, quarta-feira (7) de reunião pública articulada junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). O esforço coletivo resultou em uma boa conquista: o compromisso público da SPU de publicar até o dia 31 de maio o relatório final de demarcação das áreas da União no Norte de Minas e, na sequência, processar e outorgar o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) para a comunidade de Canabrava.
A reunião foi articulada em conjunto com as deputadas estaduais Bella Gonçalves (PSOL), presidenta da Comissão de Direitos Humanos, Andreia de Jesus (PT), vice-presidenta das Comissões de Cultura e de Direitos Humanos, Leninha (PT), vice-presidenta da ALMG, além dos deputados Leleco Pimentel (PT) e Betão (PT). Participaram da plenária a superintendente da SPU em Minas Gerais, Lorhany Ramos de Almeida, e o analista responsável pela equipe técnica de demarcação, Giuseppe Campos Vicentini. Diante das denúncias e reivindicações apresentadas pela comunidade, os representantes da SPU afirmaram o compromisso de concluir os trâmites até o fim de maio, reconhecendo o direito da comunidade de Canabrava a seu território ancestral.
"Sem território, não existiremos"
Durante a reunião ordinária da comissão, Clarindo Pereira dos Santos, pescador artesanal e morador da Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, em Buritizeiro (MG), emocionou os presentes ao relatar a luta cotidiana do seu povo pelo direito de permanecer no território ancestral. “Não digo com grande satisfação que estou aqui. Gostaria de estar no meu território tradicional, pescando e continuando nossa cultura vazanteira, sem perseguição dos latifundiários”, lamentou. Ele ressaltou que a permanência em Belo Horizonte desde a ocupação da SPU não se deu por escolha, mas por necessidade: “Não estamos aqui porque gostamos de incomodar. É porque sentimos a ausência da nossa liberdade territorial”, disse.
Clarindo denunciou o avanço das ameaças sobre o modo de vida tradicional da pesca artesanal e alertou para os impactos ambientais gerados pelos grandes empreendimentos: “O rio está sendo envenenado, virou depósito de rejeito de minério, de esgoto e veneno do agronegócio. E nós, pescadores, somos os que mais sofremos com isso”. Ele concluiu sua fala com um apelo direto pela regularização fundiária: “O termo de autorização de uso sustentável é o mínimo que precisamos para continuar sobrevivendo em paz. Fomos expulsos e jogados em caminhões porque não tínhamos nem esse papel. A gente quer seguir pescando, preservando, vivendo com dignidade. O nosso território é nossa vida”, concluiu Clarindo.
Memória, dor e resistência: a voz de uma benzedeira de Canabrava
A pescadora e benzedeira Maria Neuza Araújo Pereira fez um depoimento comovente, lembrando o despejo violento de 2017 e as perdas sofridas pela comunidade. “Saímos quase sem nada. Puseram fogo na roça, tomaram tudo da gente. Eu e meu marido tivemos que dormir no mato porque não tinha caminhão para nos levar. Saímos em cima de uma carroça”, contou. Ela relatou que, mesmo com idade avançada e com dor no corpo, fez questão de comparecer à audiência em Belo Horizonte: “vim aqui pedir a demarcação da terra e a TAUS. Quero viver com meus netos e bisnetos lá dentro da nossa terra”, afirmou Pereira.
Também expôs os impactos emocionais causados pelo despejo: “Já morreu muita gente por tristeza depois da remoção. Teve um senhor que perdeu tudo e não aguentou, faleceu 30 dias depois”, disse. Com lágrimas na voz, concluiu: “Quero a TAUS para Canabrava. Quero a demarcação da terra. A gente planta, a gente pesca, a gente vive dali. A nossa terra é a nossa cidade”, finalizou Maria.
8 anos de espera e um grito por dignidade e justiça
Irmã Letícia Rocha, secretária-executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) regional Minas Gerais e Espírito Santo, trouxe uma fala forte sobre os quase oito anos de violações sofridas pela comunidade de Canabrava. Ela entregou às deputadas e à SPU um dossiê com o histórico das injustiças e cobrou celeridade na publicação do relatório de demarcação e emissão do TAUS. “Enquanto pedimos paciência à comunidade, a área da União está sendo negociada por mais de 12 milhões de reais. Isso é imoral”, denunciou. Letícia também lembrou a urgência do momento: “Se quisermos lavar a nossa honra como mineiros, que o TAUS de Canabrava saia no dia 25 de maio, data em que será paga a última parcela da negociação das terras da União. Não podemos aceitar que a legalidade mineira mantenha esse povo às margens”, denunciou Letícia.
SPU promete relatório até 31 de maio e prioriza TAUS para Canabrava
A superintendente da SPU/MG, Lorhany Ramos de Almeida, afirmou o compromisso com a conclusão do processo de demarcação das terras da União e anunciou que o relatório final será publicado até o dia 31 de maio. Segundo ela, a comunidade de Canabrava será a primeira em Minas Gerais a ter o pedido de Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) analisado após a conclusão dos trabalhos técnicos. “Estabelecemos um novo prazo de conclusão desses trabalhos para o dia 31 de maio”, declarou. Lorhany ressaltou a complexidade do processo e a sobrecarga da equipe técnica, composta por apenas dois engenheiros de Minas Gerais.
Após a luta das famílias de Canabrava, Lorhany enfatizou que o objetivo da SPU “não é expulsar ninguém, mas regularizar e garantir segurança às pessoas que vivem nos territórios”. Ela garantiu que, mesmo antes da homologação final da demarcação, a tramitação do TAUS poderá ser iniciada. “Espero que, num curto período — de dias ou duas semanas — possamos aprovar e assinar o TAUS de Canabrava”, afirmou. A superintendente também reiterou que a regularização trará benefícios não só para os pescadores e vazanteiros, mas também para outras comunidades quilombolas e de reforma agrária na região, ao reduzir os valores de indenizações em áreas que ainda precisam ser desapropriadas. “Sabemos que essa reparação deveria ter sido feita há muitos anos, mas agora é hora de concluir essa etapa com justiça”, concluiu.
A Comunidade de Canabrava, junto ao CPP e organizações parceiras, seguirá atenta e mobilizada até que o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) seja finalmente emitido. A luta continua firme, com resistência, esperança e vigilância, para que o direito ao território tradicional seja plenamente reconhecido e respeitado.
Assista a reunião na ALMG na íntegra: