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“Nois foi nascida e criada ali, na barranca do rio São Francisco”: a voz de Maria Neuza e a luta ancestral de Canabrava

Durante reunião na SPU-MG, A pescadora e benzedeira da comunidade de Canabrava (MG), fez um forte depoimento que expressa a dor, a resistência e a sabedoria acumulada pelas famílias pesqueiras tradicionais de Minas Gerais

 

06-05-2025

Em uma fala comovente, marcada pela oralidade viva e a força ancestral dos povos das águas, Maria Neuza representou a memória coletiva da Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava, às margens do rio São Francisco. Seu depoimento, feito no dia 6 de maio de 2025, durante reunião com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) de Minas Gerais, precisa ser eternizado — pois traduz, com simplicidade e potência, o sentimento de quem carrega no corpo e na fala a história de luta, exclusão e dignidade de um povo que resiste para continuar existindo.


Depoimento na íntegra: 

 

 

Depoimento de Maria Neuza Araújo Pereira, pescadora e benzedeira da comunidade de Canabrava, em reunião na SPU-MG

Nós somos mais velhos, igual o Seu Malaquias, eu, o Clarindo. Agora vêm mais netos, vêm os bisnetos de lá pra cá. E vocês tem coração de voltar mais dias pra frente. 'Cheguem' no mesmo dia. Não mais paciência. O que será? Ou vale tudo ou, se não, nada.

Tem que ter a dor do coração da gente, põe vocês o coração no lugar da gente. É o que eles tá querendo, é isso aí pra gente fazer, sujar igual eles fizeram, pegar batalhão de polícia, falar que nós, todo mundo era armado. Só que vinha lá todo mundo com arma, 'sugestou' um milhão de policial, chegou lá, ninguém achou uma arma lá onde eles derrubaram os barraco. Porque nós, graças a Deus, as armas que nós 'tem' é enxada, é foice, é 'maçada', é facão, é 'casadeira' pra gente fazer um corte. É esse aí que era a arma que nós 'tinha'. Cadê esse que achou alguma arma lá? Ninguém.

Agora pode pegar meu filho aqui, levar a arma na cabeça dele. Tem foto dele, 'pegado' na parte íntima dele, ele passou mal. Foi até pro hospital e apertou. Tem eu própria que levei ele pro hospital, teve que fazer exame com ele. Ele fica com vergonha de falar, mas eu vou falar. Pode me virar fora, porque tem o papel dele lá, toda essa parte íntima dele.

Agora, ninguém tem coração com uma coisa dessa. Tem a Dora, que nós podia ter subido com elas aqui agora pra mostrar à Janaína. Que eu acho que ela deve ter visto muitos deles que tá aí. Que eu já vim aqui, já mostrei à Janaína até naquela sala ali onde que foi pegar. Lá pra Brasília afora, todo mundo sabe. E ninguém tem o coração disso. Olha que chega aqui, muda mais pra frente, gente. Põe vocês no lugar da gente pra comparação. Tenha dó da gente, pelo amor de Deus.

A gente teve aquela alegria, porque é dia 30 de abril. 30 de abril. Agora vai 30 de maio, vai 30 de junho. quando isso? Põe o coração de vocês igual a gente. Faz um tipo de comparação. Porque cada um Deus deu o gesto de viver. É como nós. Somos trabalhador. Não tem gesto de viver. 'Roubamos', 'matamos'. E nós não. Nós ‘veve’ é pelos braços.

Eu 'criei' meus filhos. Eu tenho 11 filhos, tudo vivo mais eu. Mas era botano a lata na cabeça, era cortando lenha pra por na cabeça, carregando distância longe. Então, por isso que nós 'tem' que ter terra. Por isso que nós 'tem' que tá lutando. Porque nois foi criada na margem do rio São Francisco... nós mora todo mundo na margem do rio São Francisco. Então, é por isso que a gente tá aqui. A gente não tamo aqui por brincadeira. A gente não tá aqui, - “ah porque eu to roubando a terra de fulano”. Não é. Porque nós foi 'nascida' e criada ali, na barranca do rio. Somos pescador. Somos vazanteiro. Vem de geração a geração.

Meu avô, meu bisavô. Meu bisavô morreu com 112 anos morando na beira do rio São Francisco. Que tem o local onde ele mora, a fazenda fica grande que ele morava. Só que era município de... antigamente era Rio Baí, que hoje é Ponto Chico. E eu não. Toda vida eu moro no Buritizeiro, porque minha mãe casou, veio pelo lado de cá. Então, eu sou 'criada' de geração.

Agora tem uma situação dessa. Eu já tenho os bisnetos. Agora, uma bisnetinha lá de 2 anos, alegra: "Eu vou mais você." Porque me chamam de Didinha, porque eu não quis me chamar de vó. "Eu vou mais você, Didinha." Não posso levar. Mas eu tenho neto. Aqui, eu tenho neto aí, 5 netos meus que estão aqui. Eu já tenho 5 netos que estão aqui embaixo. Não posso ficar alegre pra poder ter uma casa.

Agora, eu não posso. "Didinha, eu quero morar na roça." Sou obrigada às mães ficarem na cidade pra poder pôr essas escolas. Era um trem que, quando nós estávamos lá, tinha escola dentro da comunidade de Canabrava. Tinha um ônibus que ‘ponhava’ os mais estudados daqui e levava pra outra cidadezinha. Mas do primeiro ano até quinta série tinha dentro da comunidade.

Então, tem esse aqui de prova, que estudava lá na comunidade. Tem um ali ainda de prova, que estudava lá. E agora? Como é que nós vamos fazer? Vamos esperar mais tempo? Põe no coração, gente, que a gente não está aqui pra esperar isso mais não. Pelo amor de Deus, 30 dias daqui pra frente é longe, é perigoso.

Antes eu saía aqui tão alegre que a gente tava, porque foi dia 30 de abril, eu vou fazer a demarcação. Nós veio aquela maior alegria pra achar que ia levar pelo menos, a TAUS, nem isso nós não vamos levar. Nem uma TAUS, nem um papel assinado pra gente levar de alegria. Eu tenho problema de coração. É muito chato. Eu tô com ele ali, pra poder tomar.

Pra gente vir aquela alegria, vou voltar pra trás, como? Vamos passar a noite aqui pra ver se Deus abençoe, que amanhã seus corações doem, o coração doces doem, pra gente 'divulgar' igual sou eu, que posso ter um coração igual você, se transformar. Se vocês ficassem no lugar da gente, cês ia 'implorar', igual nós estamos 'implorando' aqui com vocês. Dói o coração.

Dói o coração da gente. De quem 'veve' trabalhando, planta roça. Que, igual quando nós estávamos na Canabrava, eles ‘panharam’ um carro de milho meu, os outros colocaram fogo, derrubaram os barraco nosso.

Agora vem para ver a 'tuítica' do lado de São Francisco, do lado de Biaí, que não pode ficar na Canabrava. Pronto: 30 metros de área. Gado junto com o da 'Pai' come. Ni quê que a gente vá comer.

Vamos correr e pescar. Só pode pescar à noite. Vem me 'enganchando' o barco no barranco. Vem na hora que eu estou batendo água, porque o rio está seco. No decorrer do dia amador está em cima, os 'amadores'. Você solta uma rede ali, os 'amadores' entram com o barco deles em cima, cortam as redes, vai pegar um pedaço e vai embora. A gente não está dando conta mais para sobreviver desse jeito.

Então a gente quer sobreviver da pesca, que a gente não pode largar, e também sobre a roça, sobre o 'alimentista' da gente também. Porque a gente não vai precisar comer só o peixe, não. A gente dá roça, a gente planta de tudo, graças a Deus, tudo orgânico, que a gente 'cuide', 'come', para não ficar comprando essas coisas desse povo que solta veneno, matando a a gente.

Eu vi muitas pessoas morrendo de câncer, de qualquer coisa, esse 'alimentista' dos remédio que esse povo põe. Porque tem um pivô lá perto de casa. Nós planta feijão, eles plantam, nós colhemos feijão. Entre aqueles feijão, já colheu duas vezes. Nós colhemos a vez nossa. Então isso é a vida da gente andar no mercado comprando feijão desse jeito. Porque aqui, antigamente, não tinha câncer de intestino. E hoje já está tendo, por causa desse produto desse povo.

Então, se Deus abençoar que vocês 'alimentassem' essas terras para a gente... Isso aí que vocês compram aqui na cidade, vocês compram esse problema. Vocês estão comprando doença para vocês. E se vocês não regulasse essas terras para nós, vocês iriam comer tudo orgânico, porque não tinha mistura de veneno.

Quando dá um 'purgão' numa planta, a gente sabe qualé o remédio que a gente pega do mato, para poder bater. Para não comprar mistura de mato de ninguém. É uma folha de 'morrona' com 'fume', pimenta e pinga. 'Fulano alto', põe para curtir, põe uma bomba para que não fique nada. Todo mundo tem que deixar uma dó no coração desse jeito.

Agora bate um remédio numa planta hoje, daí amanhã aquela planta já está 'acordando'. Não, gente, põe no coração, lembra da gente. Não faz uma coisa dessa com a gente, não. Porque a gente está aqui pedindo uma coisa que Deus deixou no mundo para todo mundo trabalhar: como terra. Deus deixou todo mundo uma terra para trabalhar, e você, de um, dois, três, quer tomar conta?

Então a área do Rio, do Limeiro, é dos pescadores. E eu penso: vocês não pode soltar ela para a gente? Se a gente quisesse a fazenda, invadir a fazenda, era uma coisa. Mas não. É só que é os direitos nossos. Se são os direitos dos pescadores, pelo amor de Deus, dá a gente pelo mesmo pelo menos a TAUS, para ter a garantia. Nem que depois vocês vai lá e faça a marcação da terra. 

A gente tem que sair daqui com aquela alegria. Não: “eu ganhei a TAUS, daqui uns 30 dias, dia 30 nós vamos lá fazer a demarcação”. Não sai melhor, só que vocês assinaram um papel ali, para ir lá fazer essa demarcação com a gente.

Tem hora que o nervoso da gente, a gente fala as coisas, mas depois a gente pede desculpa. Mas é porque vocês veem a necessidade da gente. Não é uma coisa que a gente está brigando, que a gente está xingando, que a gente está matando. A gente tá fazendo o que a ‘precisão’ que a gente tem, por uma coisa que vocês falam que é da gente.

Minas Gerais – 06 de maio de 2025

* Em anexo o depoimento diagramado e pronto para impressão.