
O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) lançou a terceira edição do Relatório 2024 – Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil, uma publicação fundamental para compreender a dimensão dos conflitos ambientais e sociais nos territórios da pesca artesanal. A sistematização apresentada revela a lógica expansiva do capital em seu novo ciclo de acumulação, exploração e destruição da natureza e do tecido social dos povos das águas.
O relatório não é apenas um diagnóstico da realidade de violência e dos conflitos ambientais vivenciados por pescadoras e pescadores artesanais. Trata-se, sobretudo, de um instrumento de fortalecimento da organização comunitária e das formas de luta frente à mercantilização e à financeirização dos bens comuns presentes nesses territórios. Os dados apresentados denunciam o poder de dominação e destruição que o Estado e o capital vêm exercendo contra modos de vida não alinhados à lógica destrutiva do sistema.
No contexto acirrado da disputa territorial e da financeirização dos territórios, dos oceanos e das águas doces, pescadoras e pescadores artesanais têm construído alianças com os povos das águas do Sul Global, com o objetivo de denunciar as diversas formas de violência que impactam comunidades inteiras. Essas comunidades estão sendo forçadas a reestruturar seus territórios tradicionais para atender à lógica do capital transnacional e à sua saga de transformar os bens comuns em ativos financeiros.
O relatório sistematizado pelo CPP mantém profunda sintonia com as lutas territoriais das comunidades pesqueiras, ao mesmo tempo em que é provocativo ao denunciar como os territórios estão sendo reconfigurados para atender à lógica de acumulação de capital, por meio da precificação da natureza e dos bens comuns. Foram 450 comunidades envolvidas diretamente em conflitos socioambientais no último período, e os dados apresentados revelam a intensidade da luta de classes nesses territórios.
Os conflitos socioambientais em comunidades pesqueiras tradicionais no Brasil estão em crescimento, como aponta o Relatório 2024. Em 2021, o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) lançou o Tribunal Permanente dos Povos das Águas, com o objetivo de denunciar os impactos dos novos fluxos de capital voltados à financeirização dos oceanos, através da chamada “economia azul” ou “crescimento azul”. A lógica expansionista de acumulação do capital está intrinsecamente ligada ao aumento dos conflitos nos territórios da pesca artesanal, refletindo um novo ciclo de exploração. Essa é a tendência do capital para os próximos anos. Iniciativas como a Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo, Reivindicar a Soberania dos Povos e Pôr Fim à Impunidade fazem parte das ações de resistência dos povos na construção de um direito internacional fundado nas realidades populares e não nos interesses das transnacionais.
Os conflitos ambientais devem ser observados em sua totalidade, com atenção às contradições e aos fenômenos sociais que os envolvem. A identidade pesqueira está intimamente ligada ao trabalho e ao ambiente em que essa atividade tradicional se desenvolve. O antropólogo Antonio Carlos Sant’Anna Diegues, em seu livro Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar (1983), afirma que a pesca é influenciada pelas forças da natureza — influências que têm reflexos imediatos tanto no processo de captura quanto nas relações sociais e produtivas. Segundo o Relatório 2024, os impactos ambientais relacionados ao desmatamento e à destruição de habitats representam 75,5% dos conflitos sistematizados. Isso revela uma ofensiva do capital — por meio de agentes privados e públicos — para destruir os territórios da pesca artesanal e desestabilizar a cultura pesqueira. As consequências dessas violações afetam profundamente o tecido social das comunidades, gerando insegurança econômica, alimentar e nutricional.
O que vemos é uma profunda ruptura metabólica, que desequilibra a relação histórica construída por pescadoras e pescadores artesanais com o território, as águas e a atividade pesqueira. O cenário de destruição desses territórios está vinculado aos objetivos do capital em construir mercados financeiros globais para mercantilizar a natureza, os oceanos e as águas doces. Outro dado relevante do relatório identifica que o impacto socioeconômico mais frequente é a descaracterização da cultura tradicional pesqueira, presente em 79,6% dos conflitos sistematizados. É nos territórios e nos modos de vida das trabalhadoras e trabalhadores das águas que a cultura pesqueira se constrói socialmente. Sem território pesqueiro, não há identidade tradicional pesqueira, pois é na materialidade da terra e das águas que essa identidade se forma.
Os conflitos sociais e econômicos enfrentados pelas comunidades são resultado da crise estrutural do capital em suas diversas dimensões — especialmente a crise ambiental — que afeta diretamente os territórios e os modos de vida dos povos das águas em escala global. O Planejamento Espacial Marinho (PEM) é um dos exemplos de como as transnacionais e suas agências financeiras vão atuar para impulsionar a economia azul, o que, na prática, significa intensificar as atividades industriais baseadas nos oceanos e atrair investimentos privados para os recursos oceânicos. O PEM visa redistribuir o acesso ao mar, colocando-o sob tutela e controle de empresas e do sistema financeiro, por meio da “grilagem do fundo do mar” e da apropriação da biodiversidade marinha. O acesso ao mar é um direito humano. É um bem comum dos povos e não pode ser tratado como mercadoria.
Rosa Luxemburgo, em A Acumulação do Capital, chama atenção para a seguinte questão: “O capital não conhece outra solução que não a da violência — um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência; a resistência à agressão tem o caráter de uma luta de vida ou morte”. As comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil estão em luta pela vida-território frente ao novo contexto de acumulação de capital.
A declaração do Fórum Mundial dos Povos Pescadores, sobre os rumos da Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, realizada de 9 a 13 de junho de 2025, na França, foi taxativa ao afirmar que os povos das águas estão em luta contra a privatização dos oceanos e em defesa da soberania alimentar. Os rumos políticos da conferência estão assentados no discurso neocolonial e nas falsas soluções apresentadas pelo prisma da “sustentabilidade” dos recursos oceânicos. Ora, sabemos bem a quem serve esse discurso e a prática capitalista de governança que vem sendo estabelecida para atender aos interesses das corporações e do sistema financeiro. Neste sentido, diversas organizações populares no mundo têm provocado a debater uma perspectiva ambiental para além do capital.
As transformações globais na geopolítica dos oceanos estão diretamente ligadas à forma como os Estados nacionais disputam e reconfiguram os espaços marinhos para intensificar a exploração de recursos minerais e da biodiversidade. O fundo do mar tornou-se a nova fronteira econômica, principalmente para a extração de minerais como cobre, cobalto, níquel e zinco, entre outros, considerados essenciais para a produção de energias renováveis. As questões apresentadas e sistematizadas no relatório estão diretamente conectadas ao movimento geopolítico dos oceanos e à movimentação do mercado financeiro em privatizar e mercantilizar os bens comuns presentes nas territorialidades da pesca artesanal.
O Relatório 2024 é uma síntese do processo de privatização e mercantilização dos territórios das comunidades pesqueiras no Brasil. Ao mesmo tempo, potencializa as lutas de resistência dos povos das águas, ao caracterizar as violações e expor seus principais agentes. Há uma preocupação central no relatório em desmascarar a ideologia do capital, que concebe a terra, os alimentos e a água como ativos financeiros, “passíveis de investimento” ou como meras “oportunidades de negócio”. As comunidades estão em luta, afirmando que a pesca artesanal é sustentável e reafirmando à sociedade brasileira que o pescado de qualidade vem das comunidades pesqueiras — e não da aquicultura.
As comunidades pesqueiras estão articuladas com os povos indígenas e outras comunidades tradicionais na transição agroecológica, pela demarcação dos territórios indígenas e quilombolas, pela reforma agrária popular, por justiça climática e pela ruptura com o modelo de produção capitalista. Essas têm sido as agendas inegociáveis para manter vivos os modos de vida dos territórios da pesca artesanal.
O Projeto de Lei 131/2020, que trata do reconhecimento, proteção e garantia do direito ao território das comunidades tradicionais pesqueiras, é uma resposta coletiva das pescadoras e pescadores artesanais frente ao atual contexto de violações de direitos humanos e conflitos socioambientais. A luta pelo território pesqueiro é parte das bandeiras por um projeto popular para o Brasil, pautado na soberania nacional e na reparação histórica com as comunidades pesqueiras, cujo papel na formação social brasileira foi historicamente invisibilizado.
Importante destacar que instrumentos valiosos foram construídos no último período graças à organização e à luta popular das pescadoras e pescadores — como as Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, da Pesca e das Florestas, e as Diretrizes para o Manejo Sustentável da Pesca em Pequena Escala. Esses avanços são limitados, mas fundamentais para colocar em debate os direitos humanos das comunidades pesqueiras, da terra e das águas, enquanto sujeitos de direitos.
Os intelectuais do capital afirmavam que a pesca artesanal no Brasil estava sendo gradativamente substituída por uma indústria pesqueira poderosa e mecanizada. No entanto, chegamos a 2025 com 70% do pescado consumido no país proveniente dos territórios tradicionais pesqueiros. Pescadoras e pescadores artesanais estão vivos, em luta, na defesa de seus territórios, da pesca artesanal, pela soberania popular sobre os bens comuns e pela sua existência enquanto classe trabalhadora das águas e da terra. Nosso desafio é seguir fortalecendo os processos organizativos e as lutas populares, aprofundando reflexões coletivas em torno das questões conjunturais e históricas que afetam o conjunto da classe trabalhadora — em especial, as pescadoras e os pescadores artesanais.
Francisco Nonato do Nascimento Filho
Educador popular no Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP)
* Foto em destaque: Thomas Bauer
** Este é um artigo de opinião. As ideias e posicionamentos expressos são de responsabilidade do autor e não necessariamente representam a posição institucional do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP).