Opinião

Ilha de Croa: a Ilha dos “Sem Terra”

Autor: 
Marcelo Apel - CPP regional Ceará/Piauí
Reunião de pescadores na Ilha da Croa

O ano de 1974 foi um ano de muitas chuvas, no nordeste todo. Entre o Maranhão e o Piauí o rio Parnaíba alagou vários cidades. De um lado parecia destruição, mas não era só isso, os rios são criativos. Entre as cidades de Parnaíba, no Piauí e Araioses, no Maranhão, quando as águas começaram a baixar começa a se formar uma nova “croa” (coroa), uma nova ilha. Nos anos seguintes ela foi crescendo em altura e comprimento. Uma terra muito fértil, altamente produtiva. Por incontáveis anos as populações tradicionais utilizam estas “ilhas” para o plantio aproveitando-se de sua fertilidade e da umidade permanente. Se produz de um tudo: feijão, milho, jerimum, maxixe, caju, banana, mamão, murici, jucá, cajá, coco, pimenta, cheiro verde, macaxeira e mandioca pra fazer farinha. Na parte mais central da ilha as áreas dos antigos canais foram acumulando água, que no período de chuvas enchem, para onde entram vários peixes e camarões. No entorno da ilha há uma rica diversidade de peixes e mariscos. A ilha está uns 20 km de distância do mar, da barra das Canárias, por isso a força da maré está presente todos os dias, duas vezes por dia. 

                                                                       Mapa da Ilha da Croa (MA/PI)

Já vão 44 anos e a Ilha de Croa está consolidada... até que o rio a reclame de volta.

Zé Menino nasceu junto com a Croa... no dia 31/01/1974.

Várias famílias de pescadores e agricultores familiares começaram a utilizar esta área para acampar para pescar, para plantar e mesmo para morar. Nos últimos 20 anos as moradias foram se tornando mais permanentes e várias casas de forno (farinha) foram sendo construídas. Há pelo menos 10 casas de farinha. Também nos anos 2000 chegou energia elétrica. São aproximadamente 110 famílias que hoje utilizam a Ilha da Croa. Os terrenos são pequenos medem de frente 15, 20 e no máximo 30 braças (1 braça mede 2,20 metros) e de fundo vão até o meio da ilha onde encontram o terreno que vem do outro lado da ilha. Hoje a área é conhecida como a Croa dos Sem Terras. Durante o processo de ocupação da ilha vários pescadores e agricultores familiares de Parnaíba e Ilha Grande, no Piauí e de Araioses, no Maranhão, foram se deslocando para utilizar a área. Por isso esse nome de Croa dos Sem Terra. 

Em 2009 as famílias da Comunidade de Boa Vista, em Parnaíba-PI, haviam sido despejadas de uma área que trabalhavam a décadas. Durante as cheias de 2009 a pretensa proprietária Socorro Melo mandou eles saírem da área. Foi uma situação de desespero, pois as famílias já haviam perdido parte de suas coisas na enchente e agora ficavam sem moradia e perdiam um dos locais para plantar. Na época Padre Vitório, de Ilha Grande adquire uma área e com apoio da Cáritas e de jovens voluntários italianos (Comunidade Missionária de Villaregia. http://www.cmv.it/pt-br) foram construídas casas para estas famílias. Nos pequenos lotes só há espaço para pequenos cultivos. Pelo menos a 40 anos os pais e avós destas famílias já utilizavam a Ilha de Croa para plantar e o rio Parnaíba para pescar. Seu Benedito Senhorinho Barros e Adélia Dourado da Silva Barros, pais de Zé Menino e Zé Velho estavam entre estes pescadores e agricultores. Os filhos seguiram a tradição familiar.

Do lado de Araioses as famílias intensificaram a vinda para a Croa no período de 2000. O rio Santa Rosa, que passa em Araioses é um "braço" do rio Parnaíba. No povoado Remanso onde ele se liga ao Parnaíba ficou completamente seco impedindo que a água doce corra, normalmente, por Araioses. Por conta disso a água do mar avançou salgando completamente o Santa Rosa, principalmente no verão. O que acabou com a agricultura familiar nas ilhas que estão bem próximas de Araioses como ilha do Manguinho, da Vigia e ilha do Goiabal. Com o tempo os poços foram ficando com água salobra, em função do avanço da maré. Diversas famílias que só tinham a agricultura e a pesca como fontes de renda nestas ilhas foram se transferindo para a croa, principalmente da ilha do Manguinho.

Há mais de dez anos os trabalhadores organizaram uma Associação (15/01/2006) para buscar melhorias para a área e conseguir a regularização do território. A Associação dos Pequenos Produtores e Produtoras Rurais da Ilha de Croa – APRICA tem hoje mais de 100 sócios. Vários agricultores e pescadores conseguiram financiamentos para melhorar a produção e a pesca. A área da croa pode chegar a 400 hectares. Como a área é muito fértil e produtiva pode estar beneficiando pelo menos 500 pessoas.

Mas a área sempre gerou a cobiça por parte de latifundiários da região. Na década de 2010 com o pretexto que “áreas acrescidas de marinha” que se formem em frente a sua propriedade lhes pertencem, começam a pressionar os trabalhadores. Para garantir seus plantios os trabalhadores precisam colocar cerca, pois os animais (gado, cavalos...) dos fazendeiros são largados da área dos plantios. É assim que age o fazendeiro Jorge Pires Coelho de Rezende, que é médico e sócio proprietário do Hospital Nossa Senhora de Fátima em Parnaíba. Há mais duas fazendas de dois irmãos de Jorge Rezende cujos vaqueiros um conhecido por Lucimar (sobrenome não identificado) e outro conhecido por Antonio Vaqueiro tem soltado gado nas roças e feito ameaças aos agricultores. Como forma de intimidação o vaqueiro Alexandre, da fazenda de Jorge Rezende levava o gado para pastar no roçado dos pequenos agricultores que cultivam na croa vizinha a sua propriedade. A cerca do fazendeiro tem porteira específica para essa função, a uma distância de 2 km do plantio na croa. Os agricultores fizeram cerca em volta de seus roçados, mas estas cercas são abertas pelo vaqueiro sempre que levava o gado para lá. Há uns quatro anos atrás este vaqueiro ateou fogo no plantio dos agricultores. Os confrontos entre agricultores e “jagunços” dos fazendeiros, vão se acirrando.

                                                       Cavalo do fazendeiro comendo o plantio   Cavalo do fazendeiro comendo o plantio

Em 2016, não aguentando mais tanto prejuízo, os irmãos Zé Menino (José Sebastião Dourado da Silva Barros) e Zé Velho (José Francisco Dourado da Silva Barros) entraram com ação de reparação por Danos materiais e Indenização pela perda de seus plantios (Processo 0012479-42.2016.818.0081 Juizado Especial Cível e Criminal de Parnaíba). Em resposta a esse processo, o fazendeiro consegue reverter a situação e processa a família pedindo indenização por danos morais. O pedido de Indenização dos roçados foi de R$ 4.000,00 e o de Danos Morais de R$ 20.000,00. Em fevereiro de 2017, na audiência de conciliação os irmãos são ameaçados e com medo de represálias retiram a ação. Mas, a provocação continua depois disso, as ameaças deixam de ser ameaças e Zé Menino é assassinado a sangue frio pelo vaqueiro de Jorge Rezende. O corpo foi recolhido por uma funerária de Parnaíba. Não foi feito exame nenhum e logo em seguida enterrado. Zé Menino conseguiu reagir antes de morrer e acertou um tiro de espingarda no vaqueiro. O Boletim de Ocorrência (BO 707/2017 de 07/07/2017) foi registrado junto a Delegacia de Araioses, no Maranhão. Até hoje não foi aberto Inquérito pelo Delegado de Araioses. O vaqueiro ficou em coma por mais de 6 meses e hoje se recupera e continua ameaçando as famílias. As ameaças recaem sobre Zé Velho que testemunhou o crime.

E como vão as coisas...

Diversas articulações foram realizadas depois da morte de Zé Menino. Uma visita de solidariedade foi realizada por várias entidades e organizações: MPP/PI – SPU fazendo o cadastramento dos moradoresMovimento dos Pescadores e Pescadoras no Piauí, Colônia de Pescadores Z-7 de Ilha Grande, Associação de Marisqueiras de Ilha Grande, CIA – Comissão Ilha Ativa, NEAMA - Núcleo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente – Universidade Estadual do Piauí; NuCPP - Núcleo de Cultura, Política e Patrimônio – Universidade Estadual do Piauí, NEACajuí – Núcleo de Estudos em Agroecologia Cajuí – Universidade Estadual do Piauí, AMARC/Brasil – Associação Mundial de Rádios Comunitárias. Após se realizaram diversas reuniões com a APRICA. Se articulou uma audiência com a Comissão de Direitos Humanos da OAB de Parnaíba. Com a Diocese de Brejo se buscou apoio de Dom Valdeci, da Sociedade Maranhense de Direitos (SMDH), do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Araioses (STTR), Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Araioses (SINTRAF), Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA) e do Piauí (FETAG-PI), com o Coletivo de Assessoria Jurídica Popular Antonia Flor, com o Núcleo Cajuína de Assessoria Jurídica Popular da UFPI e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Piauí. Um pedido de regularização fundiária foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) em Parnaíba. Com apoio da SMDH, do CPP-Nacional e da Diocese de Brejo as famílias foram incluídas no Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos. Também foram cobradas as Secretarias Estaduais de Direitos Humanos e a de Segurança e o Ministério Público Estadual do Maranhão.

Este processo fez avançar algumas situações. O SPU de Parnaíba reconhece que área é patrimônio da união (Despacho SEI_MP - 4450431) e encaminhou o processo ao SPU do Maranhão, já que a Croa está em Araioses. O MPF de Parnaíba encaminhou a solicitação para o MPF do Maranhão. Em novembro a SPU do Maranhão recebe em Araioses a APRICA e aceita o pedido de regularização da área para os pescadores e trabalhadores rurais. O MPE do Maranhão através da Promotoria de Araioses realiza uma oitiva com os pescadores ameaçados para relatarem as situações. A promotoria também oficiou o Delegado para que inicie o inquérito. Mesmo assim a situação de ameaças continua.

Nos dia 13 e 14 de março de 2018,  a SPU vem para Croa para cadastrar as famílias beneficiárias da área e fazer a vistoria da Croa. Ao todo foram cadastradas mais de 80 famílias. As famílias irão receber um Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) destinados apenas para famílias de baixa renda. Devem ser cadastradas ao todo 110 famílias.

O SPU se comprometeu entregar os TAUS ainda este ano até o mês de junho, antes do período eleitoral. 

Se inicie a festa e que esta festa não termine aqui...  a marcha final vai ser linda de viver... já disse Helder Câmara...


Contribuiram para este texto: Leandro Inakake de Souza (Parnaíba), Flávio Crespo (IFPI Cocal-MA), José Maria Carvalho (CPP Diocese de Brejo-MA), Antonio José (SINTRAF Araioses-MA), Ligia Kloster Apel (AMARC), Dona Helena e Zé Velho (Boa Vista, Ilha Grande-MA, Dona Teresinha (Presidente da APRICA), Seu Antonio e Carlos Eduardo (Ilha de Croa) , Chico Celso (STTR Araioses-MA), Seu Chico (ex-presidnete da APRICA).