Órgão ambiental do estado da Bahia tem atuado em conjunto com empresários para convencerem os moradores locais sobre os supostos benefícios da instalação de megaempreendimentos hoteleiros na região
Assessoria de Comunicação do CPP
As comunidades tradicionais da ilha de Boipeba, localizada no município de Cairu (BA), não têm tido paz. O destino de praias paradisíacas situado na região do Baixo Sul da Bahia, têm sido alvo de cobiça para a construção de diferentes empreendimentos turísticos que tem o objetivo de se apropriarem de áreas públicas da ilha, ameaçando a vida de moradores locais e de populações tradicionais como pescadores e quilombolas. O assédio tem acontecido com o apoio e atuação direta de servidores do INEMA (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), órgão ambiental do estado da Bahia, que tem pressionado os moradores a aceitarem as condições dos empreendimentos.
O mais recente caso envolve os moradores de Moreré, uma das regiões da ilha de Boipeba, famosa por suas piscinas naturais formadas pelas colônias de corais e muito frequentada por turistas. Na tarde dessa quarta-feira (5), os moradores foram surpreendidos com a visita de representantes do INEMA, que fizeram uma espécie de reunião informal para tentar convencer a comunidade de pescadores e quilombolas sobre a instalação do empreendimento hoteleiro “Encantos de Boipeba” na área.
A reunião marcada de última hora contou com a participação de representantes da Associação Quilombola de moradores de Moreré, além de representantes da empresa Perville, proponente do empreendimento. A empresa tem anunciado o desejo de instalar o complexo hoteleiro, que além de Moreré, abrangeria também as regiões de Tacimirim, Pedra de Santa Luzia e Coeira, numa área equivalente a 200 hectares da ilha de Boipeba.
No diálogo que tiveram com os comunitários na região, tendo o apoio de servidores do INEMA, os representantes da empresa anunciaram o empreendimento como a possibilidade de empregar as comunidades locais. “Ele falou que se a comunidade autorizasse o empreendimento, haveria a possibilidade de sermos empregados nos hotéis que seriam construídos e disse que o nosso acesso à área seria por traz do terreno, sem acesso à praia”, relatou indignado o membro da Associação Quilombola de moradores de Moreré, João*. A tentativa de oferecer empregos para os moradores locais é uma tática recorrente entre os grandes empreendimentos que se instalam nas localidades onde tem comunidades tradicionais, mas encontrou resistência entre os moradores de Moreré.
“Nós questionamos e dissemos que não poderíamos decidir sozinhos, já que fazemos parte do território. Aí eles disseram que era só uma consulta prévia, que quem decide é a comunidade”. A fala no entanto causou desconfiança entre os que estavam presentes na reunião. “A gente viu que era esperteza do INEMA junto com esse projeto. Eles ficaram surpresos quando dissemos que éramos quilombolas e que estávamos no processo de demarcação do território. Eles também queriam marcar reuniões separadas com as comunidades de Moreré e de Monte Alegre e dissemos que tinha que reunir todos”, relata João*. O morador acredita que essa foi uma estratégia usada pelo INEMA para convencer os quilombolas do empreendimento.
O assédio continuou na manhã dessa quinta-feira (6), quando uma servidora do INEMA, que se apresentou como Lolita Garrido, esteve à procura da liderança da Associação Quilombola de Boipeba, Pedro*, que não estivera presente na reunião do dia anterior. A servidora procurou o quilombola na área de trabalho dele, quando conversou com a sua esposa e mais uma vez insistiu com a promessa de empregos. A esposa retrucou que as decisões são tomadas conjuntamente e informou que o marido estava no posto de saúde. A servidora chegou a ir na casa de Pedro*, onde estava a filha grávida dele, nos últimos dias de gestação, para falar com a liderança, chegando a ficar na frente da porta da casa para aguardá-lo.
“Estou sendo pressionado pelo INEMA e por esse empresário que já recebeu notificações por desmatamento. Estou sendo constrangido até em casa. Não estou tendo paz porque o INEMA está indo me procurar e agora virou um ditador, um capitão do mato desse Perville. Até minha filha, praticamente nos dias de ter neném, está sendo constrangida pela pressão do INEMA lá na minha porta, porque quer que eu fique a favor desse empreendimento ‘Encantos de Boipeba’, onde já desmataram e onde vão tirar os nossos caminhos tradicionais e os nossos direitos. É preciso que venha à tona o que o INEMA está fazendo junto com a Perville, a empresa que é a maior desmatadora daqui”, denunciou a liderança.
A Perville pertence ao empresário italiano Fábio Perini, que já chegou a ser notificado pela administração da APA (Área de Proteção Ambiental) das Ilhas de Tinharé e Boipeba por ter desmatado áreas proibidas. Desde 2017 tem havido tentativas de instalação do empreendimento. Ainda em 2019 foi realizada uma primeira Audiência Pública para consultar a população local sobre o projeto. A atividade teve baixo quórum porque na ocasião toda a comunidade estava envolvida com a retirada de petróleo das praias, após o derramamento criminoso de petróleo que impactou toda a região nordeste do país.
Maria* foi uma das poucas pessoas que participou da Audiência e relata que o projeto tem pontos absurdos. “Ele quer ocupar uma área que não é dele. A cerca da propriedade dele está 60 metros adiante do permitido. Ele tem que recuar a cerca 60 metros. Isso não é pouca terra não”, critica. Maria também relata que já houve uma ordem do Ministério Público Federal (MPF) para a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) retirar a cerca e eles não retiraram. Ela afirma que questionou os empresários apontando que a ilha tem graves problemas no abastecimento de água e de energia e que um resort gigante causaria um grande impacto em meio às debilidades dos poderes públicos locais em oferecerem esses serviços à própria população. “Eles disseram que teriam a própria energia e abastecimento. Eu retruquei dizendo que energia até conseguiria entender, se utilizassem placas solares, mas a água, de onde eles tirariam?”, questiona a moradora.
O episódio de 2019 foi relembrado por Maria* quando também foi visitada pelas representantes do INEMA, Lolita Garrido e Indaiá Carvalho, na tarde da mesma quarta-feira, logo após a reunião com os membros da Associação Quilombola. Na conversa com a moradora, a servidora, mesmo após ter sido avisada durante a reunião que a comunidade estava no processo de demarcação do território quilombola, afirmou para Maria* que não sabia da existência de uma comunidade quilombola na ilha e também se disse surpresa pela presença de tartarugas na região.
Como o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de Povos indígenas e tribais e que determina que a instalação de qualquer empreendimento precisa da autorização das comunidades tradicionais locais, uma das etapas para o licenciamento de qualquer obra é a realização de Audiências Públicas com as comunidades locais de maneira prévia, livre e informada. As visitas e assédios realizados por servidores do INEMA em parceria com os empresários interessados no empreendimento, busca o apoio dos moradores para superar essa fase do licenciamento ambiental. Mas em meio à todo o assédio arbitrário do órgão ambiental, resta uma dúvida: o INEMA teria as prerrogativas para conceder essa licença?
INEMA, o estado da Bahia contra as comunidades tradicionais
A desconfiança dos moradores de Boipeba com os servidores do INEMA não é sem precedentes. Vários empreendimentos têm sido autorizados pelo órgão ambiental, sem levar em conta os impactos ambientais e sociais que podem ser causados na ilha e aos seus moradores. O caso mais famoso é da autorização da instalação do empreendimento da empresa Mangaba Cultivo de Coco LTDA, que quer construir duas pousadas com aproximadamente 3.500 metros quadrados, além de 69 lotes para residências de veraneio, parque aquático, píer, aeródromo e um campo de golfe. O empreendimento ocuparia cerca de 20% da área da ilha e prevê o desmatamento de 16.507.752 metros quadrados de vegetação nativa.
As terras de Boipeba são públicas da União e, por lei, devem ser prioritariamente destinadas aos usos ambientais e tradicionais das comunidades. Justamente por isto, tramita na Superintendência de Patrimônio da União (SPU) o processo de regularização do território tradicional de Cova da Onça e Comunidades do entorno. Além da ilha de Boipeba, tramitam também o processo de regularização das comunidades quilombolas de Batateira e de Garapuá que ficam na ilha de Tinharé, também pertencente ao município de Cairu. Mesmo sendo uma área pública federal, o Estado da Bahia concedeu a licença em violação ao domínio público da União sobre a área e em violação aos direitos possessórios e territoriais das comunidades.
No momento, o empreendimento está parado pela Secretaria de Patrimônio da União que apontou vícios no processo para implantação do projeto e anunciou que será feita uma suspensão administrativa cautelar da liberação do regime de ocupação da área. Mesmo suspenso, lideranças tiveram que fugir da ilha devido às ameaças que estavam sofrendo.
A atuação do INEMA tem sido tão arbitrária e temerária que o Ministério Público Federal chegou a enviar um ofício, em março de 2023, ao Secretário do Meio Ambiente do estado da Bahia, Eduardo Sodré Martins, apontando as arbitrariedades do órgão estatal que está na pasta sob o seu comando. No documento o MPF chega a relatar que o INEMA é visto pelas populações tradicionais como obstáculo para quaisquer avanços em se tratando da efetivação dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais no Estado da Bahia. O MPF afirma ainda que quando o INEMA ouve as populações o faz somente a título protocolar e formal para, depois, autorizar os mais variados projetos, empreendimentos e atividades que comprometem de forma avassaladora o modo tradicional de ser, viver e existir das comunidades tradicionais.
O MPF denuncia também o não cumprimento de recomendação enviada ao INEMA e cita a recomendação da Superintendência da SPU na Bahia ao órgão ambiental, informando que o “INEMA/BA não autorize ou licencie empreendimentos em áreas púbicas federais, principalmente nas localidades em que envolvam comunidades tradicionais protegidas constitucionalmente”.
Depois de citada todas essas recomendações o MPF chega a perguntar no ofício: “qual parte o INEMA não entendeu? Ou não quer entender? O caso envolve área pública federal”, aponta o documento. As críticas à atuação têm sido tamanhas, desde às licenças concedidas ao empreendimento da Mangaba Cultivo de Coco LTDA, que a diretora do órgão na ocasião do licenciamento, Márcia Cristina Telles de Araújo Lima, foi exonerada do cargo em setembro de 2023 e foi substituída pela advogada Maria Amélia Mattos Lins.
Mesmo com todas as críticas e vícios nos processos de licença, o INEMA continua atuando numa jurisdição que não é a sua, no que parece ser um conluio com os empresários da ilha. “Eles deixam de fazer o trabalho deles que tem que fazer, que é o de fiscalizar o desmatamento direto que tem sido feito por essa empresa e vem nos constranger”, lamenta Pedro*.
*Os nomes foram trocados para preservar as fontes que temem represálias.