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Ampliação da Hidrovia Araguaia-Tocantins ameaça ribeirinhos

Moradores dizem que já foram impactados pela barragem da hidrelétrica de Tucuruí nas atividades da pesca, lavoura e coleta de castanha. 

17-07-2019
Fonte: 

Portal Amazônia Real | Por Fábio Zuker

No sudeste do Pará a ampliação de uma via navegável no rio Tocantins, entre os municípios de Marabá e Baião, vem gerando grande apreensão entre as comunidades ribeirinhas, A fotografia mostra o pedral do Lourenço no rio Tocantins (Agência Pará)quilombolas e indígenas da região. Já afetadas pela construção da Hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada em 1984, populações que dependem da pesca para a sobrevivência temem que o pouco peixe que sobrou no rio venha a desaparecer com as obras necessárias para aumentar os trechos navegáveis do rio Tocantins. As construções podem também ser danosas à flora e fauna, além de poder aumentar a incidência de malária na região, segundo o Relatório de Impacto Ambiental da obra.

“O rio Tocantins era um rio nosso, de caminhar e pescar. Fecharam a barragem, agora querem tirar o rio de nós”, afirma Ademar Ribeiro de Souza, presidente da Associação das Populações Organizadas Vítimas das Obras no Rio Tocantins e Adjacências (APOVO), composta por populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas. 

Historicamente, são populações que vivem da lavoura, da coleta de castanhas e da pesca. “Quando fechou a barragem, subiu a água, e as castanheiras ficaram submersas. A maior parte das terras, das cachoeiras, das praias, foi tudo para o fundo”, rememora Ademar. 

“Por conta da barragem (de Tucuruí), os lagos, que eram cobertos por águas, a água não chega mais. A água enchia o lago e trazia larvas, trazia o peixe graúdo. Agora, como a água não chega mais, o peixe não reproduz lá”, continua Ademar Ribeiro de Souza.

Muitos peixes desapareceram. Ele diz que, com a barragem “a água parou, e o peixe que era de água corrente nós perdemos: jaraqui, mapará, jatuarana-bocura, pacu-manteiga, surubim, chicote… nós perdemos muitas espécies”.

Usina Hidrelétrica de Tucuruí (Foto: Pedrosa Neto/Amazônia Real)Ademar Ribeiro de Souza vive à jusante da barragem, ou seja, seguindo o fluxo do rio em direção ao oceano, localidade muito afetada pelo fechamento das comportas da barragem. Ele diz que, em tempo de seca, provoca a morte de larvas, peixes pequenos e até mesmo graúdos.

Convocadas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), foram realizadas cinco audiências públicas nos primeiros dias de julho, nas cidades de Marabá, Itupiranga, Nova ipixuna, Tucuruí e Baião – todas no Estado do Pará. Na audiência pública realizada na cidade de Baião, no dia 05 de julho, parte dos presentes se retirou, por não concordarem com a obra e o impacto socioambiental que causará para a região. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o Ibama considera essas audiências como parte do processo de consulta às populações afetadas, o que não é consenso.

“Nós não entendemos muito o que eles querem fazer. A realidade é que a gente está preocupado, pois o rio Tocantins é a fonte de vida da população, todo mundo vivia da pesca, do extrativismo e da agricultura”, reflete, com preocupação, Ademar.

Cícero Saraiva Valentim é representante da APOVO e morador da comunidade Altamira 7, às margens do lago da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no município de Jacundá. No vídeo pescadores contam seus receios quanto à obra da hidrovia e projetam os impactos que deverão ter em suas vidas. 

Entenda a obra

As obras previstas para o rio Tocantins têm como objetivo torná-lo navegável todo o ano em trechos onde hoje ele não é. Envolve processos de dragagem e derrocamento, em trechos tanto a montante quanto à jusante do reservatório da Hidrelétrica de Tucuruí. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental da obra, o empreendimento é dividido em três trechos: a) entre os municípios de Marabá e Itupiranga (52 km de dragagem); b) entre Santa Terezinha do Tauiri e a Ilha de Bogéa (derrocamento ao longo de 35km); c) entre os municípios de Tucuruí e Baião (dragagem ao redor de 125 km).

A dragagem é uma técnica de engenharia utilizada para remoção de materiais do solo, como sedimentos e rochas do fundo da água. Já o derrocamento consiste na retirada de material doO Pedral do Lourenço pode desaparecer com a dragagem do rio Tocantins  (Foto: Agência Pará) fundo do rio não originado de assoreamento, ou seja, que naturalmente compõe o rio, usualmente pedregoso.

Em 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou uma auditoria no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), relativa à contratação das obras para aumentar a navegabilidade do rio Tocantins. A auditoria constatou falhas quanto ao detalhamento do custo global da obra e pesquisa de mercado, e o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) decidiu anular a licitação. A nova licitação foi vencida pela DTA Engenharia Ltda, que apresentou orçamento no valor de R$560 milhões para realização da obra.

Um dos pontos que mais preocupa a população é a implosão do chamado Pedral do Lourenço, ou Pedral do Lourenção, como a ele se referem alguns dos pescadores. As formações rochosas, localizadas no município de Itupiranga, entre Marabá e Tucuruí, possuem 43 km de extensão e impedem a navegabilidade do rio. Sua implosão, permitiria a criação da Hidrovia Araguaia-Tocantins. 

Inauguradas em 2010, aos custos de 1,6 bilhões de reais, as eclusas da Hidrelétrica do Tucuruí foram criadas para auxiliar na navegabilidade do rio, superando os 70 metros de desnível criado pela barragem. Estão, porém, subutilizadas, já que o pedral impede a navegabilidade do rio. Há grande interesse econômico na obra. Além de minérios, a hidrovia facilitaria o escoamento de grãos e produtos pecuários da região centro-oeste para o porto de Vila do Conde, no município de Barcarena.

“Querem trazer o minério do Mato Grosso para o Pará, para Barcarena. Para isso, tem que escavar 40km de pedra no Pedral do Lourenço. Tem que ser aberto 70 metros de largura, para passar os barcos”, afirma Ademar. “Os peixes estão todos lá para cima, então vai ser um impacto muito grande”.

Para a população local, a obra poderá causar grande impacto. Ademar afirma que “a escavação do canal vai atingir totalmente os bancos de areia, de praia, onde algumas espécies de peixe ainda ficam”.

“Essas espécies de peixe vão embora. Quando eles falam, eles falam que o impacto vai ser passageiro. Que vai ser rápido. Mas essa rapidez aí, ela consegue devastar e nunca mais ser como era. Na época da barragem [de Tucuruí] foi rápido, quando fecharam o impacto foi rápido, mas ele deixou uma sequela para sempre”, diz ele.

Para Erina Gomes, do Conselho Pastoral dos Pescadores, “o projeto, licenciado pelo Ibama, governo Federal, se soma, se acumula com outros projetos locais, que estão sendo licenciados pela secretaria de Meio Ambiente do Estado, como por exemplo a Ferrovia Paraense e também de portos – já têm, por exemplo, dois portos da Cargill, projetados para a região de Barcarena, muito em sintonia com a expectativa do derrocamento e da dragagem do Rio Tocantins”.

Erina aponta para a necessidade de se olhar para os empreendimentos em seu conjunto e “considerar os impactos cumulativos destes empreendimentos”. A preocupação da advogada em compreender esse processo e como eles se coordenam implica também levar em consideração as populações de pescadores artesanais, na região de Barcarena, cujos direitos como populações tradicionais “têm sido silenciado durante anos”.

“É um problema histórico, estrutural, que temos nos processos de licenciamento ambiental no Brasil hoje. Essa negação por parte dos empreendimentos e do governo em reconhecer os pescadores artesanais como sujeitos diferenciados, como comunidades tradicionais”, reflete Erina.

“A região acima de Baião é onde se concentra uma grande parte dos território quilombolas do Estado do Pará, além das comunidades que vivem da atividade pesqueira” continua a advogada. “Esse projeto da Hidrovia, do derrocamento e da dragagem do rio Tocantins, vai afetar também comunidades indígenas, de pelo menos quatro etnias”, conclui.

 

O que diz o Ministério Público Federal?

A procuradora da República em Tucuruí, Nicole Campos Costa, disse que, em um parecer do órgão, “foram feitos questionamentos que julgo importantes: extensão do que eles chamam de ‘alterações hidro sedimentares do canal’ (o que pode incluir processo erosivo); questões relacionadas à malária, diagnóstico da flora, etc.”. O parecer técnico, segundo ela, é referente ao termo de referência do Ibama para o estudo e relatório de impacto ambiental do licenciamento da obra.

“Como MPF, não podemos deixar de ficar atentos também à essas questões, porque o empreendimento envolve não só impacto ambiental, mas social. Temos que verificar os efeitos das obras e da hidrovia na vida das comunidades, em especial as mais vulneráveis”, afirmou a procuradora.

Nicole Costa disse ainda que o MPF estuda um diálogo com o Ministério Público Estadual para elaborar uma “análise técnica dos peritos do Ministério Público sobre o EIA RIMA [Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental] do empreendimento”.

Existe também dúvida quanto à aplicabilidade da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), quanto às populações de pescadores. Segundo a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, de 1989, as populações devem ser consultadas quanto a projetos de desenvolvimentos a serem realizados em seus territórios.

Para a procuradora, o entendimento do MPF é que a convenção 169 se aplica também a essas comunidades. “O Ibama alegou na audiência em Tucuruí que essas audiências já cumprem o papel de consulta livre, prévia e informada. É um ponto a ser analisado, inclusive temos que avaliar o alcance da publicidade dessas audiências, se chegou até as comunidades mais afastadas”, afirmou.

Como o empreendimento poderá afetar diversos municípios, o acompanhamento envolve também a Procuradoria da República no Município de Marabá e a Procuradoria da República do Pará.

A empresa DTA Engenharia Ltda. foi procurada pela agência Amazônia Real, mas não se pronunciou até a publicação desta matéria.

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