Enquanto as enchentes renovam a vida no Velho Chico, a falta de reconhecimento dos territórios ameaça a segurança e a permanência dos povos das águas no Norte de Minas Gerais
Jéssica Rocha, agente de pastoral do CPP/MG | Edição: Henrique Cavalheiro, assessoria de comunicação do CPP | Fotos: Arquivo das comunidades
O aumento das águas do Rio São Francisco durante o período de chuvas é um fenômeno natural e esperado pelas comunidades pesqueiras e vazanteiras do Norte de Minas Gerais. Para esses povos tradicionais, as cheias representam um ciclo essencial da natureza, que renova a vida no rio e garante a reprodução das espécies aquáticas, fundamentais para a pesca artesanal. No entanto, a ausência de regularização fundiária compromete as condições de permanência dessas comunidades nos territórios que historicamente ocupam, evidenciando a necessidade de ação do Estado para garantir a posse legal das áreas de vazantes e refúgios.
Apesar de anual e natural, a cheia do Velho Chico revela a vulnerabilidade das comunidades quilombolas pesqueiras e vazanteiras, que vivem entre as áreas alagáveis e as partes altas das margens do rio, conhecidas como áreas de refúgio. Sem o reconhecimento de seus territórios tradicionais, essas populações enfrentam dificuldades para manter seu modo de vida, ficando expostas à insegurança fundiária e às limitações no acesso a direitos básicos. As vazantes, lagoas marginais e berçários de peixes são essenciais para a reprodução da fauna aquática e, consequentemente, para a manutenção da pesca artesanal, atividade que sustenta milhares de famílias na região.
“pode semear de novo que vai ter muita fartura”
Para os pescadores e pescadoras artesanais, a cheia do Rio São Francisco é um ciclo natural. "É o balanço das águas renovando a vida", afirma Josemar Alves Durães, pescador de Pirapora/MG, destacando a importância desse fenômeno para a biodiversidade e para o sustento das comunidades. Já para Clarindo Pereira dos Santos, da comunidade tradicional pesqueira e vazanteira de Canabrava (Buritizeiro e Ibiaí/MG), o Velho Chico tem sua própria voz e ciclo: "Ele dá o grito: 'Colham logo que eu quero passar e vou mais no alto um cadinho' – e vai mesmo! (...). Mas quando as águas baixarem e passar a febre da terra, pode semear de novo que vai ter muita fartura", explica Clarindo. A relação dessas comunidades com o rio vai além do aspecto econômico: é um modo de vida ancestral, profundamente ligado aos ritmos da natureza.
Todos os anos, as comunidades pesqueiras e vazanteiras do Rio São Francisco vivem o ciclo das cheias, que trazem alegria e renovação, mas também desafios e dificuldades. Em janeiro de 2025, a realidade não foi diferente. Para muitas famílias, o aumento das águas representa isolamento e impactos na mobilidade, como relata Enedina Souza dos Santos, da comunidade tradicional quilombola pesqueira e vazanteira de Croatá (Januária/MG):
"O quilombo ficou ilhado como acontece todos os anos. A única estrada de terra que dá acesso à comunidade encheu (lavou), pra sair ou entrar só o caminho das águas (de barco)", afirma.
A cena se repete anualmente, escancarando a necessidade urgente de políticas públicas que garantam infraestrutura adequada, segurança territorial e apoio às comunidades que dependem do Velho Chico para viver.
Nas mãos de fazendeiros e latifundiários
Durante o período chuvoso, o ciclo natural do Rio São Francisco exige que as comunidades pesqueiras e vazanteiras se desloquem para as áreas mais altas do território, permitindo que o Velho Chico cumpra seu papel e renove as terras alagáveis. No entanto, a falta de regularização fundiária compromete essa dinâmica, já que grande parte dessas áreas está nas mãos de fazendeiros e latifundiários, deixando as famílias sem alternativas seguras. Sem acesso garantido às terras de refúgio, muitos pescadores e pescadoras são forçados a buscar abrigo em casas de parentes ou nas periferias das cidades vizinhas, evidenciando a vulnerabilidade socioambiental das comunidades.
A realidade da comunidade da Ilha da Porteira (São Francisco/MG) ilustra bem esse cenário, como relata Zildete Cecília de Azevedo: "A Ilha da Porteira ficou ilhada. Durante semanas, para chegar à comunidade, só de barco. Perdeu-se o que foi plantado. O que deu para tirar de dentro de casa, tirou. O que não deu, a água levou. Alguns insistem em ficar ali mesmo, ilhados, porque não têm para onde ir, não têm condição de pagar aluguel, não têm casa na cidade. Principalmente os idosos. É um trabalho grande para tirar eles de lá, mas a gente tira, com muita conversa e com muito carinho", declara Zildete.
A pescadora também lamenta as perdas na agricultura tradicional da comunidade, mas reafirma a força e a fé de seu povo:
"A situação não está fácil, mas Deus provê. A gente perdeu o milho, umas abóboras, umas mandiocas que plantei... estavam tão bonitas, mas Deus sabe de todas as coisas. Precisamos de chuva”, finaliza.
É fundamental destacar a ausência de políticas públicas locais durante as cheias anuais, que impactam diversas comunidades ribeirinhas do Velho Chico, no norte de Minas Gerais. A cada início de ano, esses territórios enfrentam os mesmos problemas recorrentes, sem qualquer amparo efetivo por parte das prefeituras locais ou do Estado.
Celeridade na demarcação
Após uma série de denúncias e pressões por parte das comunidades tradicionais sobre a necessidade urgente da demarcação das terras da União, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) deverá concluir a demarcação de todas as terras pertencentes à União no território brasileiro até o final de 2025. A decisão segue os acórdãos 726/2013 e 1286/2021, que obrigam todas as secretarias estaduais da SPU a realizar o levantamento e o posicionamento da Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO) e da Linha Preamar Média (LPM), essenciais para a delimitação dessas áreas.
No norte de Minas Gerais, o processo já deveria estar avançado. Uma decisão judicial, fruto de uma Ação Civil Pública contra a SPU (processo nº 1004394-29.2019.4.01.3807, em trâmite na 3ª Vara Federal de Montes Claros-MG), determinou que a secretaria realizasse a demarcação até dezembro de 2023. No entanto, a SPU solicitou sucessivas prorrogações, adiando o prazo para dezembro de 2024 e, mais recentemente, pedindo mais 120 dias, o que empurra a previsão de conclusão para abril de 2025.
A importância da demarcação
A demarcação das terras da União é uma demanda histórica dos povos e comunidades tradicionais, que dependem desses territórios para manter seus modos de vida e garantir a continuidade de suas práticas culturais e produtivas. Terras alagáveis e marginais sempre foram entendidas coletivamente como pertencentes à União, mas, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando os direitos territoriais desses povos passaram a ser reconhecidos, muitas comunidades foram expulsas à força de seus territórios, vítimas da violência promovida por jagunços de fazendeiros e da apropriação indevida de áreas públicas pelo latifúndio.
Além disso, a luta pela regularização fundiária se torna ainda mais urgente diante do racismo institucional e ambiental que, por décadas, marginalizou essas populações. A influência do poder ruralista nos órgãos públicos, principalmente nas prefeituras e na segurança pública, excluiu historicamente essas comunidades do acesso a políticas básicas, dificultando até hoje direitos essenciais como educação, saúde e energia elétrica.
A urgência da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)
Para os povos e comunidades tradicionais pesqueiras e vazanteiras de Minas Gerais, a demora na demarcação significa mais um ciclo de incertezas e insegurança territorial. A expectativa das comunidades é que a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) avance rapidamente, garantindo que essas terras sejam formalmente destinadas a quem nelas vive há gerações. Além da manutenção do modo de vida tradicional, a regularização é essencial para que as comunidades tenham acesso a áreas mais altas, onde possam se refugiar nos períodos chuvosos e evitar o deslocamento forçado para periferias das cidades vizinhas.
Regularização segue paralisada por falta de orçamento e servidores
A continuidade do processo de regularização dos territórios tradicionais quilombolas enfrenta entraves significativos devido à falta de dotação orçamentária e de servidores no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que tem inviabilizado a conclusão dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID).
Todas as Comunidades Tradicionais Pesqueiras Quilombolas mencionadas nesta matéria já foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares como Comunidades Remanescentes de Quilombo e mantêm processos ativos no INCRA. No entanto, a paralisação dos RTIDs impede o avanço na regularização fundiária, comprometendo a segurança territorial e dificultando o acesso dessas comunidades a políticas públicas e garantias legais sobre suas terras.
Território Pesqueiro Livre, Já!
Diante da morosidade na regularização dos territórios tradicionais pesqueiros e quilombolas, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) de Minas Gerais intensifica sua atuação nas bases, articulando e mobilizando pescadores e pescadoras artesanais para fortalecer a luta pela demarcação e titulação dessas áreas.
Nesse contexto, o CPP cobra celeridade da SPU/MG para a demarcação das terras da União e do INCRA para a identificação e delimitação dos territórios quilombolas, pesqueiros e vazanteiros. Além disso, solicita a atuação da Secretaria-Geral da Presidência da República, do Ministério da Pesca e Aquicultura e da Secretaria da Pesca Artesanal, exigindo providências para acelerar os processos de regularização fundiária e resolver os conflitos territoriais que ameaçam o modo de vida tradicional das comunidades do Rio São Francisco no Norte de Minas Gerais.
A luta não é apenas pelo reconhecimento legal dessas terras, mas também pela proteção dos territórios, da soberania alimentar e dos direitos das comunidades tradicionais, que há séculos dependem das águas do Velho Chico para viver e resistir.