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Cheias no Rio São Francisco reforçam a urgência da regularização fundiária

Enquanto as enchentes renovam a vida no Velho Chico, a falta de reconhecimento dos territórios ameaça a segurança e a permanência dos povos das águas no Norte de Minas Gerais

05-02-2025
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Jéssica Rocha, agente de pastoral do CPP/MG | Edição: Henrique Cavalheiro, assessoria de comunicação do CPP | Fotos: Arquivo das comunidades

Iranete e seu esposo, Ronaldo, colhem milho em meio às águas que tomaram conta de sua roça na Comunidade Tradicional Quilombola Pesqueira e Vazanteira de CroatáO aumento das águas do Rio São Francisco durante o período de chuvas é um fenômeno natural e esperado pelas comunidades pesqueiras e vazanteiras do Norte de Minas Gerais. Para esses povos tradicionais, as cheias representam um ciclo essencial da natureza, que renova a vida no rio e garante a reprodução das espécies aquáticas, fundamentais para a pesca artesanal. No entanto, a ausência de regularização fundiária compromete as condições de permanência dessas comunidades nos territórios que historicamente ocupam, evidenciando a necessidade de ação do Estado para garantir a posse legal das áreas de vazantes e refúgios.

Apesar de anual e natural, a cheia do Velho Chico revela a vulnerabilidade das comunidades quilombolas pesqueiras e vazanteiras, que vivem entre as áreas alagáveis e as partes altas das margens do rio, conhecidas como áreas de refúgio. Sem o reconhecimento de seus territórios tradicionais, essas populações enfrentam dificuldades para manter seu modo de vida, ficando expostas à insegurança fundiária e às limitações no acesso a direitos básicos. As vazantes, lagoas marginais e berçários de peixes são essenciais para a reprodução da fauna aquática e, consequentemente, para a manutenção da pesca artesanal, atividade que sustenta milhares de famílias na região.

“pode semear de novo que vai ter muita fartura”

Estrada que dava acesso a Comunidade Tradicional Quilombola Pesqueira e Vazanteira de CroatáPara os pescadores e pescadoras artesanais, a cheia do Rio São Francisco é um ciclo natural. "É o balanço das águas renovando a vida", afirma Josemar Alves Durães, pescador de Pirapora/MG, destacando a importância desse fenômeno para a biodiversidade e para o sustento das comunidades. Já para Clarindo Pereira dos Santos, da comunidade tradicional pesqueira e vazanteira de Canabrava (Buritizeiro e Ibiaí/MG), o Velho Chico tem sua própria voz e ciclo: "Ele dá o grito: 'Colham logo que eu quero passar e vou mais no alto um cadinho' – e vai mesmo! (...). Mas quando as águas baixarem e passar a febre da terra, pode semear de novo que vai ter muita fartura", explica Clarindo. A relação dessas comunidades com o rio vai além do aspecto econômico: é um modo de vida ancestral, profundamente ligado aos ritmos da natureza.

Todos os anos, as comunidades pesqueiras e vazanteiras do Rio São Francisco vivem o ciclo das cheias, que trazem alegria e renovação, mas também desafios e dificuldades. Em janeiro de 2025, a realidade não foi diferente. Para muitas famílias, o aumento das águas representa isolamento e impactos na mobilidade, como relata Enedina Souza dos Santos, da comunidade tradicional quilombola pesqueira e vazanteira de Croatá (Januária/MG):

"O quilombo ficou ilhado como acontece todos os anos. A única estrada de terra que dá acesso à comunidade encheu (lavou), pra sair ou entrar só o caminho das águas (de barco)", afirma.

A cena se repete anualmente, escancarando a necessidade urgente de políticas públicas que garantam infraestrutura adequada, segurança territorial e apoio às comunidades que dependem do Velho Chico para viver.

Nas mãos de fazendeiros e latifundiários

Residência alagada Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira Ilha da Porteira (São Francisco/MG)Durante o período chuvoso, o ciclo natural do Rio São Francisco exige que as comunidades pesqueiras e vazanteiras se desloquem para as áreas mais altas do território, permitindo que o Velho Chico cumpra seu papel e renove as terras alagáveis. No entanto, a falta de regularização fundiária compromete essa dinâmica, já que grande parte dessas áreas está nas mãos de fazendeiros e latifundiários, deixando as famílias sem alternativas seguras. Sem acesso garantido às terras de refúgio, muitos pescadores e pescadoras são forçados a buscar abrigo em casas de parentes ou nas periferias das cidades vizinhas, evidenciando a vulnerabilidade socioambiental das comunidades.

A realidade da comunidade da Ilha da Porteira (São Francisco/MG) ilustra bem esse cenário, como relata Zildete Cecília de Azevedo: "A Ilha da Porteira ficou ilhada. Durante semanas, para chegar à comunidade, só de barco. Perdeu-se o que foi plantado. O que deu para tirar de dentro de casa, tirou. O que não deu, a água levou. Alguns insistem em ficar ali mesmo, ilhados, porque não têm para onde ir, não têm condição de pagar aluguel, não têm casa na cidade. Principalmente os idosos. É um trabalho grande para tirar eles de lá, mas a gente tira, com muita conversa e com muito carinho", declara Zildete.

A pescadora também lamenta as perdas na agricultura tradicional da comunidade, mas reafirma a força e a fé de seu povo:

"A situação não está fácil, mas Deus provê. A gente perdeu o milho, umas abóboras, umas mandiocas que plantei... estavam tão bonitas, mas Deus sabe de todas as coisas. Precisamos de chuva”, finaliza. 

É fundamental destacar a ausência de políticas públicas locais durante as cheias anuais, que impactam diversas comunidades ribeirinhas do Velho Chico, no norte de Minas Gerais. A cada início de ano, esses territórios enfrentam os mesmos problemas recorrentes, sem qualquer amparo efetivo por parte das prefeituras locais ou do Estado.

Celeridade na demarcação 

Pescadores e pescadoras da Comunidade Tradicional Quilombola Pesqueira e Vazanteira de Croatá guardando os móveis da sede da associação em uma parte mais alta improvisada.Após uma série de denúncias e pressões por parte das comunidades tradicionais sobre a necessidade urgente da demarcação das terras da União, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) deverá concluir a demarcação de todas as terras pertencentes à União no território brasileiro até o final de 2025. A decisão segue os acórdãos 726/2013 e 1286/2021, que obrigam todas as secretarias estaduais da SPU a realizar o levantamento e o posicionamento da Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO) e da Linha Preamar Média (LPM), essenciais para a delimitação dessas áreas.

No norte de Minas Gerais, o processo já deveria estar avançado. Uma decisão judicial, fruto de uma Ação Civil Pública contra a SPU (processo nº 1004394-29.2019.4.01.3807, em trâmite na 3ª Vara Federal de Montes Claros-MG), determinou que a secretaria realizasse a demarcação até dezembro de 2023. No entanto, a SPU solicitou sucessivas prorrogações, adiando o prazo para dezembro de 2024 e, mais recentemente, pedindo mais 120 dias, o que empurra a previsão de conclusão para abril de 2025.

A importância da demarcação

A demarcação das terras da União é uma demanda histórica dos povos e comunidades tradicionais, que dependem desses territórios para manter seus modos de vida e garantir a continuidade de suas práticas culturais e produtivas. Terras alagáveis e marginais sempre foram entendidas coletivamente como pertencentes à União, mas, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, quando os direitos territoriais desses povos passaram a ser reconhecidos, muitas comunidades foram expulsas à força de seus territórios, vítimas da violência promovida por jagunços de fazendeiros e da apropriação indevida de áreas públicas pelo latifúndio.

Além disso, a luta pela regularização fundiária se torna ainda mais urgente diante do racismo institucional e ambiental que, por décadas, marginalizou essas populações. A influência do poder ruralista nos órgãos públicos, principalmente nas prefeituras e na segurança pública, excluiu historicamente essas comunidades do acesso a políticas básicas, dificultando até hoje direitos essenciais como educação, saúde e energia elétrica.

A urgência da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU)

Residência alagada Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira Ilha da Porteira (São Francisco/MG)Para os povos e comunidades tradicionais pesqueiras e vazanteiras de Minas Gerais, a demora na demarcação significa mais um ciclo de incertezas e insegurança territorial. A expectativa das comunidades é que a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) avance rapidamente, garantindo que essas terras sejam formalmente destinadas a quem nelas vive há gerações. Além da manutenção do modo de vida tradicional, a regularização é essencial para que as comunidades tenham acesso a áreas mais altas, onde possam se refugiar nos períodos chuvosos e evitar o deslocamento forçado para periferias das cidades vizinhas.

Regularização segue paralisada por falta de orçamento e servidores

A continuidade do processo de regularização dos territórios tradicionais quilombolas enfrenta entraves significativos devido à falta de dotação orçamentária e de servidores no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que tem inviabilizado a conclusão dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID).

Todas as Comunidades Tradicionais Pesqueiras Quilombolas mencionadas nesta matéria já foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares como Comunidades Remanescentes de Quilombo e mantêm processos ativos no INCRA. No entanto, a paralisação dos RTIDs impede o avanço na regularização fundiária, comprometendo a segurança territorial e dificultando o acesso dessas comunidades a políticas públicas e garantias legais sobre suas terras. 

Território Pesqueiro Livre, Já! 

Diante da morosidade na regularização dos territórios tradicionais pesqueiros e quilombolas, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) de Minas Gerais intensifica sua atuação nas bases, articulando e mobilizando pescadores e pescadoras artesanais para fortalecer a luta pela demarcação e titulação dessas áreas.

Nesse contexto, o CPP cobra celeridade da SPU/MG para a demarcação das terras da União e do INCRA para a identificação e delimitação dos territórios quilombolas, pesqueiros e vazanteiros. Além disso, solicita a atuação da Secretaria-Geral da Presidência da República, do Ministério da Pesca e Aquicultura e da Secretaria da Pesca Artesanal, exigindo providências para acelerar os processos de regularização fundiária e resolver os conflitos territoriais que ameaçam o modo de vida tradicional das comunidades do Rio São Francisco no Norte de Minas Gerais.

A luta não é apenas pelo reconhecimento legal dessas terras, mas também pela proteção dos territórios, da soberania alimentar e dos direitos das comunidades tradicionais, que há séculos dependem das águas do Velho Chico para viver e resistir.

Estrada da Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira Ilha da Porteira (São Francisco/MG) tomada pela água

Linha de ação: