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Mudanças na MP 1303 ameaçam seguro-defeso e deixam pescadores e pescadoras sem renda

Limitação orçamentária suspende pagamentos a pescadores artesanais. Pastoral alerta para impactos sociais, alimentares e ambientais

03-10-2025
Fonte: 

Comunicação do CPP 

O seguro-defeso, benefício que garante renda mínima aos pescadores e pescadoras artesanais durante o período de reprodução dos peixes, está sob ameaça direta após as alterações introduzidas pela Medida Provisória 1303/2025, comprometendo inclusive a questão socioambiental relacionada a esse período de preservação. Com a vinculação do pagamento à disponibilidade orçamentária do governo, famílias de comunidades pesqueiras já relataram não receber o benefício mesmo estando com toda a documentação em dia. Esta situação aprofunda a insegurança financeira, fragiliza a segurança alimentar e afeta o modo de vida tradicional das comunidades pesqueiras.

O seguro-defeso cumpre uma dupla função: proteger o meio ambiente, ao impedir a pesca durante os períodos de reprodução das espécies, e assegurar a sobrevivência digna das famílias pesqueiras, que ficam impossibilitadas de exercer sua principal atividade nesse tempo.

Sem ele, a escolha imposta a pescadores e pescadoras é dramática: ou enfrentam a fome, ou desrespeitam o período de defeso, com risco de multas e criminalização. Os pescadores e pescadoras têm consciência que este período é importante para que os peixes possam continuar existindo.

A MP 1.303, porém, introduziu a possibilidade de suspensão do pagamento caso não haja recursos orçamentários disponíveis. Isso já tem efeitos concretos: comunidades denunciam que, apesar de estarem com o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) regularizado e em dia, o benefício não foi liberado. A consequência imediata é o desequilíbrio financeiro de milhares de famílias e o risco de aumento da insegurança alimentar em territórios que já enfrentam vulnerabilidades históricas e silenciamentos.

Pescadores parados e sem renda

O pescador artesanal Giovanni Fauzino, morador do bairro Prainha, em Imaruí (SC), relata a dificuldade enfrentada diante do atraso no pagamento do seguro-defeso. “O seguro por enquanto não veio ainda e nós estamos aqui parados, não podemos pescar, não podemos fazer nada. O Ibama está em cima e tem muita gente que fez umas comprinhas para pagar com o seguro, né, e não veio até agora”, contou.

Aos 47 anos e com décadas de experiência na pesca artesanal, Giovanni afirma que nunca teve problemas com o benefício até agora. “É como no meu caso: eu pesco camarão e agora estou parado, porque não dá para pescar, não dá para fazer nada. Se o cara vai e bota uma rede ali, já estão em cima. Eles têm que fazer alguma coisa, né?”, disse o pescador.

O peso da responsabilidade

O pescador destaca que a categoria não pode ser responsabilizada por falhas dos outros. “Nós não temos culpa. E nós ficamos aqui, porque se ninguém paga, a gente reclama. O cara já está tudo certinho, já pagou, está tudo em dia. Eles têm que dar o jeito deles, né? É culpa deles, nós não temos nada a ver”, afirmou. Giovanni também lembrou que a pesca artesanal é a base do sustento de muitas famílias. “Acho que eles sabem como é que o pescador sofre aqui para pegar o pão de cada dia. É suado, é trabalhado. Tem que comprar rede, tem que comprar canoa, pagar luz, água, comida. Nós temos que pegar do mar para pagar nossas contas. E não dá, né? Nós pagamos a nossa parte, agora eles têm que pagar para nós”, concluiu Fauzino.

Três meses sem seguro-defeso

Volnei do Santos Tomé, pescador artesanal, 54 anos, morador da comunidade Ponta Grossa, em Imaruí (SC), relatou as dificuldades enfrentadas com a falta de pagamento do seguro-defeso. “Estamos passando por grandes dificuldades, vamos para três meses e não conseguimos receber nada, e não tem previsão. Enquanto muitos estão dormindo na sua boa cama, os pescadores estão aqui batalhando, sofrendo, vendo suas contas atrasarem, seus boletos chegando, arrebentando a corda sempre no lado mais fraco”, lamentou Tomé.

Para Volnei, a situação se torna insustentável diante da ausência de alternativas. “Esse benefício é para suprir nossas dificuldades no período em que a pesca fica fechada, para deixar o bicho repovoar. Mas desse jeito, nós não estamos aguentando mais. A gente até se emociona em falar umas coisas dessas”, ponderou o pescador, e concluiu: “O pescador artesanal sempre sendo judiado pela maioria. E os nossos governantes jogando sempre nós de escanteio. Sempre prometendo coisas melhores e as coisas boas nunca vêm. Não sei o que vai ser de nós. Só Jesus na causa mesmo”.

“Ver um filho com fome”

O pescador alertou para o risco de aumento dos conflitos. “Ver um filho com fome, ver uma conta de luz atrasada e se desespera. Então ele é obrigado a pescar, ele é obrigado a se virar. Mas ele não pode, porque o INSS proíbe. Infelizmente é a única profissão que não pode ter outra profissão: é de pescador. E fica nós sendo jogado para um lado e para o outro. E ninguém faz nada pelos pescadores artesanais”, finalizou. 

O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) reconhece a urgência de um ajuste fiscal no Brasil, mas questiona que o peso recaia sobre comunidades empobrecidas e tradicionais. Para a pastoral, o país precisa de uma reforma tributária justa, que taxe os mais ricos e alivie os que ganham menos, como o que foi aprovado ontem (1º) na Câmara dos deputados. Porém, sacrificar pescadores e pescadoras para equilibrar as contas públicas é transferir aos mais vulnerabilizados uma responsabilidade que não lhes cabe.

Pressão sobre os estoques pesqueiros

Para a secretária de Direitos e Organização do CPP, Valmira Gonçalves, a limitação orçamentária prevista na MP 1.303 traz impactos diretos ao meio ambiente e à sociedade. “Sem benefício cresce a pressão para pesca ilegal em época de reprodução, colocando assim em risco os estoques pesqueiros e a alimentação de todos nós que consumimos pescado”, alertou. Ela também destacou as consequências para a economia das comunidades: “A economia local também sofre, porque sem receber o benefício, os pescadores e as pescadoras não conseguem adquirir, comprar. Então sofre as lojas, as feiras, o comércio, a comunidade toda sente o impacto da perda desse benefício”, afirmou Gonçalves.

Desigualdade no setor

Valmira questionou ainda a disparidade de tratamento entre diferentes segmentos da pesca: “Enquanto isso, a pesca industrial segue recebendo bilhões de subsídios. E quem paga a conta são os pescadores e as pescadoras artesanais”, disse. Para ela, o benefício não deve ser encarado como despesa, mas como política pública fundamental: “O seguro-defeso não é gasto, é benefício conquistado pelos povos das águas. E isso conserva a comida na mesa e a proteção das águas”, ressaltou. E concluiu: “Defender o direito do seguro-defeso é defender a vida nas comunidades pesqueiras, é defender que a pesca se mantenha viva para as próximas gerações”.

Se há fraudes na emissão de registros de pesca, não são os pescadores e pescadoras, que historicamente e ancestralmente exercem seu modo de vida, os culpados. O ônus do combate às irregularidades deve recair sobre os órgãos responsáveis pela fiscalização, não sobre trabalhadores e trabalhadoras que dependem do benefício.

Não se pode criminalizar a pesca artesanal

A matéria no portal do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) sobre a suspensão de mais de 131 mil licenças do RGP reforça a importância da fiscalização e do combate às fraudes no sistema, que é uma demanda antiga da própria pesca artesanal. As comunidades pesqueiras sempre reivindicaram que o seguro-defeso seja garantido para quem realmente vive da pesca. No entanto, preocupa o fato de que circulam notícias e falas, inclusive de autoridades públicas, que associam de forma direta o RGP e o seguro-defeso às fraudes. Essa fala acaba por estigmatizar a categoria e transmitir à sociedade uma imagem equivocada.

A pesca artesanal não pode ser marginalizada: ao contrário, precisa ser respeitada, pois é a primeira a defender o meio ambiente, a proteger os ciclos de reprodução e a lutar pela sustentabilidade das águas. O seguro-defeso, conquistado após árdua mobilização dos povos das águas, não pode ser colocado em xeque por falhas de gestão ou por generalizações que criminalizam os pescadores e pescadoras. Deve ser preservado como política pública essencial para garantir a vida e a dignidade das comunidades pesqueiras e a conservação dos ecossistemas e toda a biodiversidade envolvida. 

A incerteza paira sobre milhares de famílias que já começam a sentir os efeitos da medida. Já há pescadores e pescadoras que não receberam o seguro. Sem poder pescar e sem o seguro-defeso, como sobreviverão? A resposta, até agora, é a mesma que ecoa nas águas e nas comunidades: insegurança e indignação.

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