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Ir. Nilza Montenegro, a religiosa que ajudou no processo de organização das mulheres pescadoras do Brasil

22-08-2020
Fonte: 

Assessoria de Comunicação do CPP

No dia de hoje, 22 de agosto, completam-se cinco meses da Páscoa da Ir. Nilza Montenegro. A freira que dedicou boa parte da sua vida na construção do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e na organização das mulheres pescadoras, escolheu um dia simbólico para a sua passagem, 22 de março, o Dia Mundial da Água, o elemento que se conecta diretamente com os Povos com os quais ela tanto aprendeu e ensinou: os pescadores e pescadoras artesanais. Há 3 anos Ir. Nilza Montenegro sofria com uma saúde debilitada, que a impedia de sair do leito que ocupava na residência da Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia da Frassinetti, em João Pessoa, na Paraíba.  Se estivesse viva, Ir. Nilza iria completar 98 anos, no dia 8 de dezembro.

A notícia do seu falecimento chegou com atraso de cinco meses para nós do Conselho Pastoral dos Pescadores e para as comunidades pesqueiras que tanto apoiou. A sua partida discreta seguiu o estilo de vida reservado e pouco afeito aos laurels, que certamente merecia, mas que nunca encorajou. Por isso, segue aqui uma homenagem singela, em respeito à maneira como Ir. Nilza encarava a vida, mas que está longe da sua importância máxima para a conquista de direitos dos pescadores e pescadoras  artesanais de todo o Brasil.

Mas para entender a sua importância, é preciso descobrir afinal, quem foi a Ir. Nilza Montenegro?

 

Quem foi Ir Nilza Montenegro?

Maria Nilza de Miranda Montenegro nasceu na fazenda da sua família no interior da Paraíba, mas cresceu e passou boa parte da sua vida em Campina Grande (PB).  Ela se formou em enfermagem, em Santiago do Chile, mas nunca exerceu a profissão. Aos 18 anos deu início à sua vida religiosa na Congregação das Irmãs de Santa Dorotéia da Frassinetti. Antes de iniciar o trabalho com os pescadores e pescadoras artesanais, Ir. Nilza foi professora e superiora nos colégios administrados pela sua congregação.

Após ter atuado junto com os pescadores e pescadoras da Paraíba, é em março de 1975, com a sua chegada em Itapissuma (PE), que Ir Nilza iniciará o trabalho revolucionário junto aos pescadores e pescadoras artesanais, em especial às mulheres “pescadeiras”, como gostavam de serem chamadas.  “Sete anos após a criação do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), em Itapissuma, ao lado do padre Benedito Tavares Badú  e do frei Alfredo Schnuettgen, Ir. Nilza mudou a história dos povos das águas em nosso País, da organização da categoria e da luta por direitos sociais, levando, por exemplo, ao reconhecimento da profissão de pescadora artesanal (antes inexistente) por parte do Estado brasileiro em 1979”, explica o sociólogo e professor do departamento de Ciências Sociais da UFPE, Cristiano Ramalho.

O pesquisador tem se dedicado a estudar as organizações de pescadores e pescadoras artesanais e percebe a religiosa como a responsável por ter iniciado pautas importantes para os movimentos pesqueiros até os dias de hoje. “Foi a partir de sua participação que muitas pautas e ações importantes para as comunidades pesqueiras artesanais ganharam força e visibilidade, tais como a luta contra a poluição dos rios e mares; pela democratização e autonomia das colônias de pesca; pelo respeito, conquista e valorização dos direitos das mulheres pescadoras; pela defesa da identidade e do modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais; contra a marginalização socioeconômica e exclusão dos povos das águas. Muitas das conquistas sociais ocorridas na história da pesca artesanal no Brasil, nas últimas 5 décadas, tem, de algum modo, a marca, a presença e/ou a inspiração da freira Nilza Montenegro”, explica.

O reconhecimento da sua atuação também é feito por pescadoras artesanais que a partir do trabalho de Ir.  Nilza, protagonizaram fatos importantes dentro da história da pesca. A pescadora de Itapissuma (PE), Joana Mousinho, foi a primeira mulher pescadora a ser presidente de colônia no Brasil, no ano de 1989. Atualmente, à frente da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), Joana reconhece o estímulo ao protagonismo que Ir Nilza incentivava. “Foi graças à luta contínua e incessante dela que hoje o Brasil reconhece o trabalho das pescadoras, onde antes nem tínhamos o direito à carteira de pesca. Ela, junto conosco, travou uma grande luta em que vencemos”, recorda.

A luta à qual Joana se refere começa ainda nos anos 70, com o trabalho de Ir. Nilza e do conjunto do CPP com as pescadoras. Um dos principais pontos desse trabalho foi o resgate da autoestima dessas mulheres, que passaram a se reconhecer como trabalhadoras da pesca. O auto reconhecimento  ajudou a modificar a situação de total exploração, de invisibilidade e de negação de direitos do Estado. O que rendeu a essas mulheres nos anos de 1978/1979, o acesso ao Registro Geral da Pesca (SUDEPE). Maria das Dores da Conceição, Joana Maria da Conceição, Maria de Lourdes Sena, Maria José Sena, Maria do Socorro da Silva, Damiana Maria da Silva, Ivonete Paulino entre outras mulheres, foram as primeiras a receberem o Registro. Em 1981, já eram 260 mulheres registradas.

Joana Mousinho relembra a importância de Ir. Nilza nesse processo e fala da relação de carinho mútuo com a religiosa, que também foi fonte de aprendizado. “Para mim, a irmã era uma segunda mãe. Me repreendia, mas me ensinou muitas coisas em defesa dos meus irmãos e irmãs da pesca. A mesma deixa um grande legado na luta referente à pesca artesanal. As palavras dela que eu jamais esquecerei: ‘aprendam a andar com suas próprias pernas e sejam agentes da sua história. Nunca se envergonhem da sua profissão’”, relata Joana.

Essa importância também é reconhecida pela pescadora Mônica Mousinho. “Para nós ela foi uma grande professora. Mesmo sendo exigente, soube ser amiga, companheira e deixou um grande legado, que com o seu ensinamento, nós aprendemos. Se hoje estamos à frente da colônia, agradecemos a ela”, reconhece.

O agente de pastoral do CPP de Pernambuco, Severino Santos, mais conhecido como Bill, conheceu Ir. Nilza com apenas um ano de idade. Natural de Itapissuma (PE), Bill vivenciou a importante atuação de Ir. Nilza junto às pescadoras artesanais, mas também presenciou situações mais prosaicas, como a forte amizade entre a sua mãe e a Ir. Nilza, que fazia com que ambas usassem roupas parecidas, costuradas pela própria Ir. Nilza. “O manequim das duas era igual. E como as duas andavam muito juntas, algumas pessoas achavam que minha mãe também era freira”, recorda.

A atuação de Ir Nilza serviu de inspiração para o trabalho que Bill realiza hoje como agente de pastoral, que ressalta a importância e o legado de Ir. Nilza. “Quando muitos não acreditavam, ela assumiu pra si o desafio da luta junto com as mulheres ‘pescadeiras’ na busca de reconhecimento do trabalho e dedicou sua vida à isso. Com seu trabalho, muitas mulheres se afirmaram como grandes lideranças. Seu trabalho foi o de proporcionar o acesso dessas mulheres e seus filhos ao registro de nascimento e até o acesso à carteira de pesca como ações primordiais para acesso aos diretos sociais e econômicos desse grupo tão marginalizado em nossa sociedade . Ir Nilza partiu, mas deixou um legado para continuarmos na luta junto com os homens e mulheres da Pesca Artesanal”, defende. 

Esse protagonismo das mulheres pescadoras iniciado nos anos 70, devido à contribuição da atuação de Ir. Nilza, pode ser percebido nas organizações de pescadores e pescadoras artesanais até os dias de hoje. Em 2006 as mulheres pescadoras se organizaram e criaram a Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), que reúne pescadoras de todo o país em pautas que ainda exigem o reconhecimento de direitos das profissionais da pesca pelo Estado e que buscam melhores condições de trabalho para as pescadoras artesanais. O aparecimento da ANP vai influenciar no surgimento do Movimento dos Pescadores e Pescadoras artesanais (MPP) em 2010, que têm entre as suas principais lideranças mulheres pescadoras.  Esse protagonismo feminino se faz presente tanto no nome do movimento, quanto na articulação das lutas.

A importância de Ir. Nilza é enorme e é reconhecida por todos que conviveram com ela. A recente descoberta da sua morte deixa a nós do CPP tristes e aos pescadores e pescadoras artesanais que a conheceram de luto. “Nós pescadoras e pescadores de Itapissuma estamos de luto pela morte da nossa querida Irmã Nilza, mulher guerreira que sentia na pele o sofrimento dos menos favorecidos. Uma mulher que sempre procurou fazer o bem, sem olhar a quem. Foi a nossa grande professora, amiga, conselheira e hoje tudo o que sabemos foi ela quem nos ensinou. Saudades profundas!”, lamenta Joana. Em nós do CPP, essas saudades profundas também reverberam e resta-nos agradecer à Ir. Nilza, dar continuidade e repercutir o seu trabalho que revolucionou a vida de tantos pescadores e pescadoras artesanais pelo Brasil.

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