A Campanha Mar de Luta, que reúne movimentos de pescadores e pescadoras artesanais, organizações de Direitos Humanos e ambientalistas, lançou nessa terça-feira (10/09), na Audiência Pública realizada na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados, o "Manifesto Mar de Luta 5 anos: O crime do petróleo e as vozes dos pescadores e pescadoras artesanais". O documento denuncia a falta de respostas após cinco anos do chamado crime do petróleo, quando manchas de óleo contaminaram todo o litoral nordestino e parte do litoral do sudeste, com petróleo bruto.
Ainda no manifesto, a Campanha responsabiliza o colonialismo das elites e do Estado brasileiro, que exploram terras e águas sem reconhecimento da presença ancestral das comunidades pesqueiras e sem respeito ao modo de vida delas, violando o direito de consulta prévia, livre e informada garantida pela Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.
As comunidades também se pronunciam contra a PEC 03/2022, que permite a privatização dos Terrenos de Marinha, contra o PL 576/2021 que está em andamento no Senado Federal e que regulamenta a exploração de energia offshore. O documento também solicita o apoio e a aprovação do PL 131/2020, que trata da criação de legislação para demarcação do Território Pesqueiro. Uma lista com seis reivindicações relacionadas à saúde, meio ambiente e justiça social e ambiental também estão pautadas no documento.
Confira o Manifesto na íntegra logo abaixo ou aqui!
Manifesto Mar de Luta 5 anos: O crime do petróleo e as vozes dos pescadores e pescadoras artesanais
Nós, pescadores e pescadoras artesanais, juntamente com povos e comunidades tradicionais e organizações parceiras, nos levantamos para recordar, resistir e lutar. O crime do derramamento de petróleo em 2019, que manchou as águas de mais de mil localidades e devastou nosso litoral, nunca foi só um desastre ambiental, foi um reflexo de um processo histórico de colonialismo interno das elites e do Estado brasileiro que super explora os bens naturais e nos nega o direito ao território, ao sustento e à dignidade.
Ao longo dos séculos, nossas terras e águas têm sido exploradas (carcinicultura, cercas e etc) e apropriadas sem nosso consentimento, sem reconhecimento de nossa presença ancestral e sem respeito ao nosso modo de vida. O Estado brasileiro, ao priorizar grandes interesses econômicos sobre nossas necessidades, perpetua uma lógica colonial que vê nossos territórios apenas como recursos a serem explorados, e não como espaços de vida e cultura para nossas comunidades. O crime do petróleo de 2019 é mais um capítulo dessa história de violência, que submete nossos corpos e nossos ambientes à contaminação, doenças e à destruição, afetando nossa saúde física e psicológica, enquanto os responsáveis permanecem impunes.
Desde a chegada dos primeiros colonizadores, nossa relação com o mar e a terra tem sido atacada. Hoje, esse ataque se dá de formas mais sutis, mas igualmente violentas. O petróleo que se espalhou pelas nossas águas em 2019 é uma continuação da mesma exploração desenfreada que já devastou terras indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais ao longo da história do Brasil. A cada novo projeto de extração de recursos naturais, somos empurrados para as margens, excluídos das decisões sobre o futuro dos nossos territórios.
O derramamento de petróleo de 2019 não foi um evento isolado. Ele representa décadas de negligência estatal e econômica com as populações tradicionais, que são as mais afetadas pelos danos ambientais. Nossas águas, que sustentam nossa pesca, nossa cultura e nosso modo de vida, foram contaminadas sem que tivéssemos sequer voz nas decisões. Mais uma vez, o Estado tardou em nos proteger e responder à altura da gravidade do crime. Nossos corpos foram usados como barreiras físicas na limpeza do óleo, e nossas vozes foram silenciadas quando pedimos por justiça e reparação.
Somos totalmente contra a PEC 03/2022 e dizemos um sonoro NÃO! Essa proposta simboliza a morte dos territórios pesqueiros e das comunidades que dependem deles. Não toleramos cercas nas águas, que são fonte de vida e sustento para milhares de pescadores e pescadoras artesanais. A luta é pelo livre acesso às águas e pela proteção do meio ambiente!
É urgente que o Parlamento concentre seus esforços na aprovação de projetos que garantam a proteção dos territórios pesqueiros e fortaleçam a defesa do meio ambiente, como o Projeto de Lei 131/2020 que dispõe sobre o reconhecimento, proteção e garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras, considerado patrimônio cultural material e imaterial, sujeito à salvaguarda, proteção e promoção, além de prever o procedimento para sua identificação, delimitação, demarcação e titulação. Ao PL 131/2020 dizemos SIM!
Mas não é apenas o passado que exigimos reparar. O presente e o futuro também estão ameaçados. A expansão da exploração de petróleo, a construção de grandes empreendimentos energéticos, a questão das eólicas, tanto onshore quanto offshore, tem gerado sérios impactos ao desrespeitar os territórios e trazer doenças, pobreza e devastação ambiental para as regiões afetadas. A transição energética, que deveria ser um caminho para um futuro mais sustentável, precisa considerar os povos tradicionais, garantindo proteção e direitos aos que já habitam esses territórios. Além disso, surge a pergunta: para quem essa energia está sendo produzida? Se não é para o consumo de todos os povos e comunidades, estamos diante de uma injustiça energética, onde mais uma vez somos excluídos desse processo.
O Projeto de Lei n° 576/2021 que está em andamento no Senado Federal, que regulamenta a exploração de energia offshore, representa mais uma grave ameaça à pesca artesanal, desconsiderando os impactos nos territórios pesqueiros e a sustentabilidade das comunidades tradicionais pesqueiras. Para este PL, nós dizemos NÃO, pois é essencial que o desenvolvimento energético respeite os direitos dos povos das águas e proteja os recursos naturais fundamentais para nossas vidas.
As políticas que favorecem interesses econômicos internacionais sobre nossas vidas reforçam essa lógica de colonialismo interno, onde nossos territórios são entregues ao lucro enquanto nós, que há gerações cuidamos e vivemos nessas áreas, somos tratados como obstáculos ao "progresso".
Não são apenas as decisões e legislações federais que ameaçam a pesca artesanal. Leis estaduais e interferências municipais, muitas vezes impulsionadas por prefeitos e vereadores em estados e municípios com comunidades pesqueiras, têm colocado em risco a existência dos povos das águas. Essas iniciativas locais buscam, de forma velada ou explícita, destruir territórios pesqueiros e enfraquecer nossa prática ancestral. Estamos cientes dessa realidade e não permitiremos que, em nenhuma instância de governo — desde o presidente da República até os vereadores dos menores municípios do Brasil — sejam criados mecanismos que destruam nossos territórios e ameacem nossos modos de vida.
A imposição de projetos como a extração de petróleo, sem consulta, livre, prévia e informada conforme garantido na Convenção 169 da OIT, sem respeitar direitos das comunidades tradicionais, de acordo com o decreto 6040/2007, revela o quanto ainda vivemos sob um regime de exploração que nos trata como dispensáveis. Assim como nossos ancestrais enfrentaram a opressão colonial, hoje continuamos lutando contra essa exploração contemporânea, que marginaliza nossas comunidades e degrada nossos territórios.
Por isso, as nossas exigências são:
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Reconhecimento de que o crime do petróleo é também parte de um processo de colonialismo interno. Não foi apenas um desastre ambiental, mas uma violação dos nossos direitos territoriais e culturais. Requeremos reparação não só pelos danos materiais, mas pela desconsideração histórica das nossas formas de vida.
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Reparação socioeconômica imediata e ampla para pescadores, pescadoras e comunidades tradicionais afetadas. Os auxílios até hoje oferecidos foram insuficientes e excludentes, e o Estado falhou em reconhecer a magnitude dos impactos que ainda sofremos.
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Proteção dos territórios tradicionais contra novos projetos de exploração de petróleo e gás. Não aceitaremos a abertura de novos poços em áreas que já estão sob forte pressão ambiental. Os danos da extração de combustíveis fósseis perpetuam a colonização de nossos territórios e agravam as crises climáticas que nos afetam diretamente.
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Justiça ambiental e social: exigimos uma verdadeira transição energética que não reproduza a lógica colonial de exploração e marginalização. Qualquer transição para energias renováveis deve ser justa e incluir a participação das comunidades tradicionais, assegurando que não seremos mais uma vez sacrificados em nome de interesses econômicos globais.
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Na área da saúde, exigimos ações para identificar e acompanhar as pessoas que tiveram contato direto com o petróleo, verificando os efeitos a longo prazo em sua saúde. É fundamental garantir assistência médica contínua, além de benefícios como auxílio à incapacidade temporária e permanente e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para quem teve a capacidade de trabalho afetada e perdeu renda. Também é essencial incluir cuidados com a saúde mental das pessoas atingidas. Queremos um atendimento de saúde integrado, que leve em conta tanto os impactos físicos quanto mentais, considerando a ligação das comunidades afetadas com os seus territórios de pesca.
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Respeito às nossas formas de vida e à nossa soberania sobre os territórios. As políticas públicas e os projetos que afetam nossas águas, terras e formas de subsistência precisam ser construídos com nossa participação plena. As decisões não podem mais ser impostas de cima para baixo, reforçando a marginalização histórica que sofremos.
Nós, pescadores e pescadoras artesanais, ao lado de quilombolas, indígenas, caiçaras e outras comunidades tradicionais, continuamos a resistir. Nossa luta é pela justiça, pelo respeito às nossas culturas e pela proteção dos nossos territórios. Somos os guardiões dos mares, dos rios e das florestas, e exigimos que nossas vozes sejam ouvidas e respeitadas.
Mar de Luta: Não somos herança do colonialismo, somos a resistência viva contra ele!