20 de Novembro, data histórica que marca o dia em que o herói Zumbi dos Palmares foi morto pelas forças colonialistas, líder do primeiro estado livre de todas as Américas, como afirmava Lélia Gonzalez. É importante fazer essas referências que não encontraremos nos livros de história e nem na bibliografia colonial. A construção da consciência negra passa, necessariamente, pela desconstrução da herança colonial racista, que tem afetado cotidianamente os corpos negros e seus territórios tradicionais.
A luta contra o racismo e genocídio do povo negro está presente no território tradicional pesqueiro, pois a pesca artesanal é feita pelas mãos de mulheres e homens negros que têm se dedicado a essa atividade enquanto herança dos seus ancestrais. A territorialidade pesqueira é espaço de lembranças e de muitas lutas que têm referências em Luiza Mahim, no NÃO do Dragão do Mar, na força de João Candido na Revolta da Chibata, na revolta Praieira, entre tantas lutas do passado e presente que não são contadas nos livros, nas rodas e nem na tela clara da TV, pois esses processos de invisibilização são parte das medidas de negação da existência e presença do corpo negro. A leitura deve ser feita radicalmente, faz-se necessário a inquietação dos lugares e papeis que têm sido reservados para a comunidade negra, e dessa reserva, que a nossa consciência negra tem buscado negar e denunciar.
A rebeldia e consciência negra correm nas veias de pescadoras e pescadores artesanais que estão constituindo processos autônomos de retomada dos seus territórios tradicionalmente ocupados, nas autodemarcações de terra e água, na ocupação de prédios públicos para denunciar o racismo institucional. As violências são bem diversas e a disponibilidade de afirmação da identidade tem mobilizado essas comunidades.
Os processos de auto-demarcação de terra e das águas, empreendidos pelas pescadoras e pescadores, têm ferido a lógica do estado paternalista, caridoso, que batiza e presenteia os seus, propondo outra territorialidade não colonial, afinal é preciso reparação histórica. É entre o mar, as lagoas e rios que se vem construindo outra cartografia do território pesqueiro. A Campanha Nacional de Regularização Fundiária é uma dessas medidas de possibilidade de escrita comunitária. As comunidades pesqueiras são também um dos espaços negros de encontro e reencontro com toda uma ancestralidade e modo de ser, em permanente diáspora. Resistir no território tem significado existir na diáspora negra.
As comunidades pesqueiras têm sido vitimas do terrorismo de estado e da politica neocolonial de desenvolvimento, representado na instalação de indústrias petrolíferas, na transposição do Rio São Francisco, nos projetos improdutivos do agronegócio, nos complexos industriais, na mineração, na construção de hidrelétricas e termelétricas, na privatização e mercantilização dos territórios tradicionais, o visível projeto de “alguém precisa ser afastado” é vivenciado no território pesqueiro na instalação e implementação de projetos dessa natureza, que têm seus gabinetes assentados na supremacia branca, na herança escravocrata e colonial, nos traços do Racismo Ambiental das diversas faces da injustiça ambiental.
O território pesqueiro não está deslocado das práticas perversas coloniais e suas heranças de destruição, genocídio, aprisionamentos, criminalização, espancamento, humilhação e desconfiguração intencional das atividades tradicionais. Essas são algumas das muitas formas de violência que o Estado e as diversas iniciativas privadas têm aplicado nos territórios tradicionais. É necessário trazer presente o não dito, o que não se fala, o vivenciado, os olhos em lágrimas de mulheres negras que têm enterrado seus filhos que são vítimas do projeto genocida que vem na bagagem da instalação de empreendimentos nas comunidades pesqueiras. É preciso falar ainda de várias comunidades que vivenciam novamente o esquecimento forçado, a perca da memória coletiva, que é representada quando antigos terreiros de candomblé são impactados por grandes projetos. Geralmente onde existe um terreiro, se passa uma estrada por cima. Acreditamos que as linhas construídas são intencionais e direcionadas.
É em meio a tantos processos contínuos de violências, que precisamos fazer memória de Luiza Mahim, de Zumbi dos Palmares, de Negra Zeferina, de tantas e muitas mulheres pescadoras, que no segredo dos mangues vão construindo as estratégias de luta e resistência. É na calmaria e na agitação das águas que os passos rebeldes de mulheres e homens vão se forjando, é dessa territorialidade não falada que renasce a esperança, as danças e tambores, que todos os dias são forçados a silenciar, mas que os olhos firmes e a voz forte dos ancestrais fazem com que os remos e canoas continuem firmes e presentes.
As comunidades tradicionais pesqueiras são constituídas de ancestralidade, pertencimento e resistência, sendo dessa forma a continuidade do encantamento e segredo, que só cabe às mulheres e homens que decifram a linguagem das águas. Território de expressão, vivências que se manifestam no jeito específico da pesca artesanal, no cuidado, como no catar e cantar no mangue, na construção das canoas, jangadas e barcos, que de cores e nomes, são acolhidos cotidianamente nos braços da grande mãe Yemanjá, a ligação entre essa diáspora vivenciada no silencio do peito e das mãos que carregam saberes transmitidos na oralidade.
Temos aprendido com Lélia Gonzalez a falar o nome e sobrenome. É com a cabeça erguida e o bico na diagonal que os enfrentamentos precisam ser feitos, como gosta de provocar Vilma Reis. É da sensibilidade e do olhar de Alex Ratts que construímos outras linguagens possíveis. As referências são necessárias para alimentar a luta do dia a dia. Território pesqueiro que tem uma irmã Carolina Maria de Jesus, que traz vivências parecidas e próximas a de tantas pescadoras artesanais. É da voz quilombista de Abdias Nascimento que reforçamos a importância das práticas comunitárias que acontecem no território. É preciso recuperar, para não se perder na perversidade que é a individualidade colonial, a voz firme e o coração sensível de Luiza Barros, que precisamos para a luta cotidiana. Beatriz Nascimento volta hoje, à nós, e chama para o reencontro com os nossos. É da voz de Dom Helder Câmara ao chamar Mariamar, que precisamos reescrever as nossas linhas, nossas cores, nossos terreiros e comunidades pesqueiras com os nossos que estão espalhados na diáspora negra.
*Francisco Nonato do Nascimento
Militante do Movimento Negro
Conselho Pastoral dos Pescadores – Regional Ceará
Graduando em Ciências Sociais UECE