Quando foi que a água deixou de ser boa?
Quando foi que deixou de ser irmã e casta como cantava Francisco?
Quando foi que a água encurtou sua quantidade e qualidade?
Quando foi que rios, córregos, fontes, mares e oceanos começaram a mostrar sinais de doença e lixo, desequilíbrio, ameaças e morte?
Não há uma resposta única e fácil, mas toda explicação passa por um mesmo lugar: quando a água deixou de ser sistema vivente e bem comum para ser mercadoria e ferramenta de grandes projetos... a água deixou de ser benção para ser recurso.
Dentro da lógica do sistema capitalista a água é um meio para fazer funcionar a economia, um recurso indispensável da vida cotidiana com valor econômico que pode gerar lucro.
Mas para nós a água vive! A água como sistema vivente tem sua autonomia e suas leis, se comunica com todos os outros seres e estabelece seus momentos e fases num diálogo vital de fazer a vida acontecer. Desrespeitar esta autonomia é ameaçar todo o sistema de vida.
A água como bem comum participa dos afazeres e necessidades dos seres humanos – lava, leva, irriga, molha, cura, limpa, alimenta, benze, mata a sede – recebe impactos e sofre intervenção... mas mantém sua capacidade de auto-regeneração como fator fundamental da continuidade dos grupos humanos. Quando os sistemas de água já não podem se auto-regenerar toda a vida comum está em perigo e, saber lidar com isso é sabedoria fundamental de estar vivo.
No passado diferentes culturas associavam divindades com as águas e de modo particular com os rios. Em muitas mitologias e nas religiões o tema da água é fundamental: tanto na forma de chuva, como também de mananciais e rios.
Disputada por divindades e templos, a água - rio, chuva, orvalho, fonte, poço - recebe uma variedade de tratamentos rituais que atravessam desde os cultos oficiais dos Estados até a vida cotidiana das populações. Muitas das disputas entre as divindades das narrativas mitológicas descrevem a luta pelo controle dos processos ligados à água – na Bíblia Baal vai ser conhecido e cultuado como divindade que controla a chuva e as tempestades, e quer controlar também, substituir ou reprimir as divindades locais ligadas às nascentes de águas, rios e poços.
Na Bíblia o Deus do povo pobre está nas nascentes e poços. Cada poço de água, cada manancial, cada chuva e cada orvalho vão ser motivo de celebrações, práticas e procedimentos com a finalidade básica de manter a vida do grupo, mas também assumindo os conteúdos de fertilidade, purificação e regeneração da vida e seus mecanismos produtivos e reprodutivos.
Em especial as mulheres na Bíblia estão sempre presentes nas fontes e poços tanto na perspectiva do trabalho – de fazer chegar a água para os animais e a comunidade – como também na perspectiva religiosa: as mulheres fazem uma experiência de Deus na água cotidiana, na fonte e no poço. Enquanto os homens fazem experiências de montanha e fogo, as mulheres conhecem a Deus no poço e na fonte.
Vários textos poderiam ser lembrados ( por exemplo Êxodo 2 – Moisés encontra com mulheres no poço – e João 4 – Jesus encontra a Samaritana no poço ) mas um dos textos mais significativos é o de Hagar – Gênesis 16, 1 a 6). Ela é escrava, ela africana, trabalhadora na família ampliada de Abraão e Sara. Ela engravida do patrão, conhece a ira da patroa e a nada nem ninguém a defende. Hagar foge com seu filho pequeno e vai para o deserto. Tudo está seco e a vida é impossível. Ela coloca a criança num canto pra esperar morrer. E então... Deus ouve o choro da criança! E esse choro co-move e revela Deus. Ali naquele lugar brota uma fonte de água. Deus se mostra como água salvadora! Água que mata a sede, cura a secura e afasta a morte. Deus é água. Deus é vida.
Hagar vai declarar o nome de Deus na fonte de água: El Roí, que quer dizer, “Eu Vi Aquele que Me Vê”. Não é o mesmo Deus conhecido por Abraão e Sara. É Deus da fonte, que se revela para a escrava e restaura a vida ameaçada. E assim vai ser que as mulheres vão conhecer a divindade do olho dágua e defender a vida das comunidades a partir das fontes.
O simbolismo da água está presente ainda hoje na vivência do batismo dentro do cristianismo: levamos nossas crianças para ser abençoada pela Água. No candomblé, o banho ritual - de rio ou de ervas – é fundamental na iniciação da filha-de-santo. Nos dois casos a água participa de um processo de nova criação, de purificação e proteção.
Yemanjá é a principal divindade feminina associada aos rios e suas desembocaduras, à fertilidade das mulheres, à maternidade e principalmente ao processo de criação do mundo e da continuidade da vida. Ela se associa ao plantio e colheita dos inhames e coleta dos peixes, donde seu nome Yemojá (Yeye Omo Ejá), Mãe dos filhos peixes, divindade regente da pesca e protetora de pescadores e pescadora.
Esta relação antiga e sagrada das mulheres com a água, as fontes e os rios, é fundamental para a luta de resistência em defesa dos rios, oceanos e das comunidades que vivem e convivem com estes sistemas.
Na beira dos rios as religiões oferecem e recebem vida. Banhos de distintas formas participam do dia-a-dia de objetos, pessoas e produtos a serem consumidos além da presença frequente no tratamento de pequenas febres, intoxicações e nervos. Gelo. Água quente. Escalda-pés... distintas formas de entrar de novo em contato com o potencial molhado de vida. E no trabalho, na lida da pesca, na agricultura e no trato com animais. Cada dia a mulher trabalhadora nega o sistema que quer vender e aprisionar as águas, e celebra a presença de Deus na água vivente e bem comum.
No trabalho, na luta e na espiritualidade nós Vemos Aquela que nos Vê: bendita água!
* Nancy Cardoso é pastora metodista