No dia 20 de novembro fazemos memória da luta heroica de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares e de todo povo negro que lutou bravamente por liberdade, terra e direitos. Por mais de 100 anos a República de Palmares enfrentou as tropas coloniais e suas políticas de desestabilização. Reivindicar o legado histórico e simbólico da resistência palmarina é afirmar compromisso com a agenda política por reparação histórica e de preservação e manutenção do patrimônio ancestral e político da população negra no Brasil.
Desde 1971 a militância do Movimento Negro tem pautado a data para mobilizar o debate em torno da questão racial em espaços públicos e a importância e necessidade de políticas de ação afirmativas frente ao grave quadro de aprofundamento das desigualdades e violência racial enfrentado por negras e negros em seu cotidiano.
A mobilização política e contra colonial das Organizações de Mulheres Negras, do Movimento Social Negro Brasileiro, de povos e comunidades tradicionais e da Bancada Negra no Congresso Nacional, foi fundamental para a sanção da Lei 14.759/2023, promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que oficializou o 20 de novembro como feriado nacional, passando a ser o dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Essa iniciativa foi fundamental para fortalecer e promover ações coletivas de combate e denúncia do racismo, por políticas de promoção da igualdade racial e por reparação histórica. As vivências e modos de vida da comunidade negra é diversa nas periferias, cidades, campos, águas e florestas. É fundamental visibilizar essas experiências, pautas e especificidades para a construção de políticas de equidade e promoção da igualdade étnico racial no país.
As comunidades tradicionais pesqueiras organizadas nos diversos movimentos populares da pesca artesanal no Brasil vem se colocando enquanto espaços formativos para intensificar o letramento racial e aprofundar a leitura da realidade brasileira e das questões socioambientais a partir da contribuição da intelectualidade negra. A presença afirmativa das coletividades afro-pesqueiras sustentasse no legado do patrimônio cultural e ancestral do povo negro das águas. Os espaços formativos e de partilha dos saberes afro-pesqueiros são fundamentais para a resistência frente às violências do racismo estrutural e ambiental que afetam os territórios da pesca artesanal.
Na dicisa¹ formativa do Movimento Negro Educador², os movimentos populares de pescadores e pescadoras artesanais, têm reivindicado, a identidade afro-pesqueira enquanto expressão viva da contribuição dos povos africanos para a formação da realidade social e cultural da pesca artesanal no Brasil.
A luta em defesa e pelo direito ao território pesqueira é parte da agenda política por reparação histórica da comunidade negra. Nesse sentido os Movimentos de Pescadores e Pescadoras Artesanais, tem denunciado a política e a lógica colonial da negação de suas existências³ e dos modos de vida das comunidades tradicionais pesqueiros no Brasil. A Campanha Nacional de Regularização dos Territórios Tradicionais Pesqueiros, lançada em junho de 2012 em Brasília, movimentou as memórias comunitárias e ancestrais em torno da herança dos povos originários, africanos e afro-brasileiro em torno das suas diversas contribuições para a construção de tecnologias ancestrais sustentáveis de pesca, de sabores, fazeres e saberes.
A consciência negra afro-pesqueira, forma-se na pedagogia das águas que é parte do vai e vem das reflexões e dos reencontros com as memórias e identidades, que historicamente foram subjugadas e são retomadas enquanto referência para as lutas de afirmação da identidade e do território pesqueiro. Frente a intensificação e impactos do racismo estrutural na vida das pescadoras e pescadores artesanais é fundamental que as correntezas e os ventos da maresia anticolonial corroa as estruturas que sustenta o sistema político e econômico do estado colonial, que institucionaliza e financia as diversas formas de violência contra os modos de vida dos pescadores e pescadoras artesanais.
O movimento pesqueiro educador, vem tecendo a Consciência Negra em seus territórios tradicionais, enquanto parte significativa da política de valorização preservação das memórias afro-pesqueiras, para a defesa de seus territórios, frente aos conflitos socioambientais e violação de direitos humanos.
Segundo dados do Relatório 20214: Conflitos Socioambientais e violações de Direitos Humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil, observa-se que o racismo ambiental e o racismo institucional, são as principais violações enfrentadas pelas comunidades, representando 47,2% dos casos apresentados. Os dados sistematizados são demonstrativos do nível de racialização dos conflitos nas territorialidades da pesca artesanal e como o racismo ambiental impacta, afeta e interrompe modos de vida.
Se faz necessário recolocar no centro do debate e da organização política comunitária, o papel que o racismo estrutural tem para a continuidade da exploração e opressão ao mesmo tempo que é base de sustentação do sistema mundo patriarcal-racista-capitalista. O exemplo pedagógico de Preta Tia Simoa e Chico da Maltide diz muito das estratégias aquilombada das águas de interromper práticas e lógicas sustentadas na mercantilização da vida e dos territórios. As mobilizações organizadas pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) durante a semana da Consciência Negra e do Grito da Pesca propicia projetar a insubmissa imaginação política dos povos das águas enquanto projeto política de desobediência e enfrentamento ao capital neocolonialista representados pelas iniciativas de privatização das águas para atender aos projetos de aquicultura e carcinicultura, da expansão de parques eólicos e de energia solar.
O xirê5 é a roda ancestral que movimenta as mais diversas possibilidades em torno da recuperação e preservação da memória comunitária pesqueira, que se refaz por dentro do mangue raiz que promove redes de conexões entre rios e oceanos. A identidade afro-pesqueira não é só uma categoria, é sobretudo vivência, experiência e (r) existência, sendo apetrecho de pesca nas embarcações da liberdade, que navegam por águas profundas da memória, ao mesmo tempo que é ancoragem6, enquanto alimento ancestral que se transforma em axé, força vital, para a lutas de afirmação da identidade pesqueira e por reparação histórica, ou seja, reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios tradicionais das comunidades afro-pesqueiras para enfrentar o racismo estrutural e a concentração de terra.
Reivindicar e celebrar 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra é retomar o histórico da luta palmarina para afirmar bandeiras históricas de justiça racial e territorial dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Seguimos em luta com todas as vozes das águas que organizaram lutas de libertação, construíram aquilombamentos, terreiros, movimentos e ações de ocupação política de espaços estratégicos. A luta continua meu povo!
1 - Dicisa é uma peça de artesanato de palha usada em terreiros afro-brasileiro, sendo um dos objetos sagrados para o povo de santo, seja no processo iniciático como nas diversas obrigações existentes nas comunidades tradicionais de terreiro.
2 - GOMES. Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes,2017.
3 - CARTILHA. Projeto de Lei de Iniciativa Popular Sobre Território Pesqueiro. 2012.
4 - Disponível em: http://www.cppnacional.org.br/sites/default/files/publicacoes/Relat%C3%B...
5 - Xirê é uma palavra Yorubá que significa roda, ou dança para a chegada dos Orixás.
6 - SILVA, Cidinha da. Insumo para a ancoragem de memórias negras / Organização Natalia Carneiro, Bianca Santana, Gabriela Gaia. – 1.ed – São Paulo: Oralituras, Fundação Rosa Luxemburgo, Casa Sueli Carneiro, p. 11, 2022.