Opinião

Consciência Negra Afro-Pesqueira: memória, fazeres e resistência na afirmação do pertencimento étnico-racial nas comunidades tradicionais pesqueiras

Autor: 
Francisco Nonato do Nascimento Filho

No Dia Nacional da Consciência Negra fazemos memória da luta heroica de Zumbi dos Palmares e de todo povo negro que bravamente segue o legado histórico do líder palmarino. É no exercício cotidiano da recuperação da memória coletiva em torno do patrimônio cultural e ancestral do povo negro, que se tem forjado o letramento racial e o pertencimento étnico-racial, enquanto fundamento vital para a resistência, frente às diversas formas de violência do racismo estrutural.

Na dicisa[1] formativa do movimento negro educador[2], os movimentos populares de pescadores e pescadoras artesanais têm reivindicado a identidade afro-pesqueira, enquanto expressão viva da contribuição dos povos africanos para a formação da realidade social e cultural da pesca artesanal no Brasil.

Tem sido no processo de luta pelo direito ao território pesqueiro, que os movimentos de pescadores e pescadoras artesanais têm rompido com a lógica colonial da negação das existências[3] e dos modos de vida tradicionais pesqueiros. A Campanha Nacional de Regularização dos Territórios Tradicionais Pesqueiros, lançada em junho de 2012 em Brasília, movimentou todas as memórias comunitárias em torno da herança dos povos originários, africanos e afro-brasileiros, existentes no fazer e no ser da pesca artesanal, enquanto política de afirmação e pertencimento.

A consciência negra afro-pesqueira forma-se na pedagogia da maré, que é parte do vai e vem das reflexões e do reencontro com memórias e identidades que historicamente são subjugadas. Outra tecnologia ancestral é a maresia anticolonial que corrói as estruturas e o sistema de poder político e econômico do estado, que institucionaliza as diversas formas de violência e contraria aos modos de vida dos pescadores e pescadoras artesanais.

O movimento pesqueiro educador vem tecendo a consciência negra em seus territórios tradicionais, enquanto parte significativa da política de valorização das memórias afro-pesqueiras, para a defesa de seus territórios, frente aos conflitos socioambientais.

Segundo dados do Relatório 2021[4]: Conflitos Socioambientais e violação de Direitos Humanos em comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil, observa-se que o racismo ambiental e o racismo institucional são as principais violações enfrentadas pelas comunidades, representando 47,2% dos casos apresentados. Os dados sistematizados são demonstrativos do nível de racialização dos conflitos nos territórios tradicionais pesqueiros e de como o racismo ambiental impacta e interrompe modos de vida.

Faz-se necessário recolocar no centro do debate e da organização política comunitária, o papel que o racismo estrutural tem para a continuidade da exploração e opressão no modelo de sociedade que é patriarcal-racista-capitalista. Os ventos libertários de Chico da Maltide, o jangadeiro e abolicionista, é um convite para interromper com a lógica da mercantilização da vida e dos territórios, ao mesmo tempo que projeta a imaginação política das águas, enquanto projeto político de desobediência ao projeto do capitalismo neocolonialista.

O xirê[5], enquanto dança ancestral, movimenta as mais diversas possibilidades em torno da recuperação cotidiana da memória comunitária, que se refaz por dentro do mangue raiz. A identidade afro-pesqueira não é só uma categoria, é sobretudo vivência, experiência e (r)existência. É apetrecho de pesca das embarcações da liberdade, que navegam por águas profundas da memória, ao mesmo tempo que é ancoragem[6], enquanto alimento ancestral que se transforma em axé, força vital, para as lutas de afirmação da identidade pesqueira e por reparação histórica, ou seja, reconhecimento, demarcação e titulação dos territórios tradicionais das comunidades afro-pesqueiras.

 


[1] Dicisa é uma peça de artesanato de palha usada em terreiros afro-brasileiro, sendo um dos objetos sagrados para o povo de santo, seja no processo iniciático como nas diversas obrigações existentes nas comunidades tradicionais de terreiro.

[2] GOMES. Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes,2017.

[3] CARTILHA. Projeto de Lei de Iniciativa Popular Sobre Território Pesqueiro. 2012.

[5] Xirê é uma palavra Yorubá que significa roda, ou dança para a chegada dos Orixás.

[6] SILVA, Cidinha da. Insumo para a ancoragem de memórias negras / Organização Natalia Carneiro, Bianca Santana, Gabriela Gaia. – 1.ed – São Paulo: Oralituras, Fundação Rosa Luxemburgo, Casa Sueli Carneiro, p. 11, 2022.