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Portaria do MMA proíbe a pesca de espécies em risco de extinção, mas ignora empreendimentos que ameaçam o rio São Francisco e os seus peixes

01-11-2022
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Texto por Laís Cristina Alvares Rodrigues Assis - Oceanógrafa e agente do CPP | Edição: Assessoria de Comunicação do CPP | Foto: João Zinclar

No dia 7 de junho desse ano (2022), a PORTARIA Nº 148 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), atualizou a Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, e alterou a Portaria nº 445 (17/12/14), que já dispunha sobre as espécies de peixes e invertebrados aquáticos da fauna brasileira ameaçadas de extinção. A recente alteração tornou proibida a pesca das espécies Surubim e do Pacamão, de importante valor comercial para os pescadores artesanais do rio São Francisco, causando temor aos profissionais da pesca de serem criminalizados durante o exercício da atividade, além de terem a já fragilizada renda familiar impactada. A inclusão das espécies na portaria segue o padrão das medidas tomadas pelo atual governo: falta de transparência, ausência de estatísticas pesqueiras e limitada participação dos pescadores artesanais.

Para entender o impacto dessa medida e as suas fragilidades, é importante antes compreender o que a Portaria determina, o impacto que ela causa nos pescadores e pescadoras artesanais, além da atual situação de vulnerabilidade do rio São Francisco e de suas espécies. Cada um desses temas será abordado a seguir.

 

Portaria 148

A partir da PORTARIA 148, passaram a ser classificadas como Vulneráveis (VU): o Surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e o Pacamão (Lophiosilurus alexandri), permanecendo o Pirá (Conorhynchos conirostris) como Em Perigo (EN).  A medida torna essas espécies protegidas de modo integral, incluindo, entre outras medidas, a proibição de captura, transporte, armazenamento, guarda, manejo, beneficiamento e comercialização.

Para classificação do estado de conservação das espécies no Brasil, são seguidas as normas da IUCN (International Union for Conservation of Nature's) de elaboração da Lista Vermelha, para determinar o status de conservação das espécies brasileiras, sendo cinco critérios para essa determinação. Para uma espécie se classificar como vulnerável, é necessário que se enquadre nos critérios 1 e 5. A seguir os critérios:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As categorias da Lista Vermelha, que avalia o risco de extinção de espécies de todo o mundo são:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O processo passa por várias etapas, cujas pesquisas científicas publicadas embasam oficinas realizadas entre pesquisadores especialistas. No entanto, a falta de transparência do Governo Bolsonaro, e a contínua publicação de atos normativos paralegais, sem a apresentação ou a publicação de estudos científicos e informações estatísticas oficiais, geram desconfiança sobre as razões para proibição da pesca das espécies.

Outro ponto que preocupa é a limitada participação dos pescadores e pescadoras nas tomadas de decisões sobre o as legislações pesqueiras. A própria Portaria 445, que foi modificada pela Portaria 148, passou por um longo processo judicial de suspensões motivadas por essa falta de diálogo do Estado com os representantes da pesca. A ausência de participação dos pescadores nas decisões sobre a 445 foram sanadas temporariamente, pela criação de um Grupo de Trabalho com a participação dos pescadores artesanais, mas ainda falta transparência por parte do governo.

A falta de escuta dos pescadores artesanais, em seus diversos territórios, prejudica no processo de entendimento da vulnerabilidade das espécies, mas viola também o princípio do Consentimento Prévio, Livre e Informado, conforme indica a Convenção da Organização Internacional do Trabalho 169, da qual o Brasil é signatário. A Convenção 169 da OIT determina que os povos sejam ouvidos sobre questões relacionadas ao seu território. Toda essa surdez estatal culmina em um processo que pode gerar vulnerabilidade, criminalização e exclusão da categoria da pesca artesanal profissional.

Para Magno da Colônia dos pescadores de Ibiaí (MG), a proibição da pesca de surubim pode causar impacto na renda familiar. “(A medida) vem para enfraquecer a pesca, e se acontecer isso mesmo, pode se dizer que está acabando com a categoria. A pescaria é uma atividade tradicional, não só como profissão, mas como cultura. Um surubim às vezes traz meio salário pra dentro de casa. O que eles estão querendo? Prender o pescador?”.

Magno aponta a importância da pesca artesanal para a segurança alimentar no Brasil e questiona de quem são os interesses em proibir a pesca dessas espécies. “Nós sabemos que a pesca artesanal coloca alimento na mesa da população brasileira e nós incomodamos o piscicultor, outras categorias de empresários. Deve-se pensar: isso é interesse de quem? Do governo? Dos empresários? Deixo o meu lamento porque eu pratico muito a pesca do surubim”.  

O pescador ainda fala do impacto econômico e ambiental que a proibição pode causar. “É uma satisfação muito grande pro pescador ir lá no rio e trazer um surubim pra casa, é um sinal de vitória. A gente quando vai pro rio e captura o surubim, a gente já se sente suficiente, e vem embora e já sabe que ganhou uma semana, cinco dias. Com a proibição, os pescadores vão precisar explorar muito mais as outras espécies para suprir as necessidades dentro de casa. É um tiro pela culatra, protege uma e coloca o pescador para explorar as outras espécies”.

 

Situação do rio São Francisco

Quem é do Rio São Francisco sabe que o rio já não é mais o mesmo e que já não se encontram peixes como antigamente. Medidas para conservação das espécies e do Rio são demandas antigas e constantes dos pescadores e pescadoras artesanais, assim como dos povos vazanteiros, pois a sua sobrevivência está ancestralmente ligada aos fluxos do Velho Chico. No entanto, são constantes as publicações de medidas de proibição de captura ou referentes a gestão pesqueira, elaboradas sem a participação ampla da categoria afetada. 

Ao passo que tais medidas para conservação das espécies são publicadas proibindo e penalizando os profissionais da pesca artesanal, inúmeros projetos de “desenvolvimento” que impactam diretamente a reprodução das espécies e integridade humana, são priorizados dentro dos territórios pesqueiros.

As barragens hidrelétricas são as principais responsáveis pela diminuição das populações de ictiofauna no Rio São Francisco, pois elas alteram o regime hidrológico e o fluxo de vida e reprodução da ictiofauna das lagoas marginais. Mesmo assim, o governo federal incluiu no Programa de Parcerias de Investimentos do governo em 2020, o projeto de barragem UHE Formoso. Esse projeto de barragem no Rio São Francisco existe desde a década de 1980 e já foi impedido devido à importância ecológica da região. No entanto, o projeto foi recuperado e hoje recebe apoio do governo federal para elaboração dos estudos de impacto ambiental, executados pela Tracbel Suez e pela Quebec Engenharia, no Rio São Francisco, doze quilômetros à montante das cidades de Pirapora e Buritizeiro, cujo lago de 32 mil quilômetros quadrados poderá alcançar o paredão da barragem de Três Marias.

Outro fato que também ficou conhecido pelo dano provocado aos peixes do Rio São Francisco, foi o extravasamento de rejeitos da empresa Votorantim Metais Zinco S.A., hoje Nexa Metais, em Três Marias (MG), à jusante da barragem. Segundo a Confederação de Pescadores, entre outubro de 2004 e setembro de 2005, toneladas de peixes foram encontrados mortos. A FEAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais) detectou a presença de metais pesados principalmente de zinco nas amostras, sendo a Votorantim, hoje Nexa, a única a produzir esse metal na região. Na justiça a empresa nunca respondeu criminalmente pelo ocorrido. Outro caso foi o da Mineradora Vale, que causou o crime de mineração em Brumadinho em 2019, e também foi a responsável pelo ecocídio do rio Paraopeba, afluente do Rio São Francisco, que matou grande população de peixes. Um grande acordo milionário com inúmeros interessados, e pouquíssimos afetados beneficiados, impediu também nesse caso a criminalização da empresa.

Por fim no dia 5 de setembro de 2022, o Ministério do Meio Ambiente publicou a Portaria 229, prorrogando a data de início de vigência do Anexo 3 da Portaria 148 de 7 de junho de 2022, sobre a Lista Oficial de Peixes e Invertebrados aquáticos ameaçados de extinção, para o dia 1 de dezembro de 2022. 

 

Automonitoramento pesqueiro e os caminhos para a sustentabilidade

Conforme o artigo 3º da Portaria 445 de 2014, as espécies classificadas como vulneráveis (VU), no caso do Surubim e do Pacamão, poderão ter permitido o uso sustentável observando quatro critérios: se for regulamentado e autorizado pelos órgãos competentes; se não tiver sido considerada ameaçada na avaliação anterior; se houverem dados de pesquisa e monitoramento na área a ser autorizada, para subsidiar a tomada de decisão e se forem adotadas medidas de preservação das espécies. 

Para essa autorização de uso sustentável é exigido, de todas as partes interessadas, uma ampla articulação com realização de fortes incidências, oficinas, capacitações e encontros para construção desses arranjos, inclusive com a participação de pescadores e pescadoras artesanais no levantamento de informações durante a execução do Plano de Recuperação do Surubim.

Ainda que em fase inicial, os Pescadores e Pescadoras do Rio São Francisco têm sido estimulados a realizar o automonitoramento pesqueiro para fundamentarem trabalhos e estudos com os dados de captura da pesca artesanal. Joana Lúcia de Mathias Cardoso (MG) é uma das pescadoras que iniciou o processo de automonitoramento da sua produção de pesca. Ela acredita que o automonitoramento pode colaborar para refletir com dados reais a situação das espécies de peixe. “O automonitoramento pra mim foi muito importante, não tenho o que reclamar. Esse monitoramento pra gente é uma prova, deu mais segurança pra gente fazer a anotação dos nossos pescados, pra mostrar a realidade que o nosso Rio São Francisco tem peixe. Nossos relatórios que a gente fez tem o nosso pescado com fartura, tem o surubim com fartura, tem outras espécies que a gente nem conhecia como o Bagre Africano, graças a Deus tem muito surubim com muita abundância, Graças a Deus! Agora eu fico muito triste, difícil para nós pescadores estarem tirando o nosso direito do nosso pescado, do nosso sustento, falando que não há surubim. Temos provas do surubim, do pacamã e até do pirá, que aqui tem com muita abundância. Eu não tive nenhuma dificuldade de mostrar a minha atividade de pesca, minha anotação, e o automonitoramento pra mim é de muita importância”, defende.

Francisca da comunidade da Ilha do Curimatá, em Mathias Cardoso (MG), pescadora artesanal e vazanteira defende que o automonitoramento pode colaborar com dados sobre a manutenção do surubim: “O automonitoramento serve para tudo, para nos beneficiar com a produção de peixes que a gente vai pescando na semana, no período da pesca. Com a proibição do surubim, a partir do automonitoramento podemos provar que o surubim não está extinto, porque ali podemos provar a nossa produção por semana. O automonitoramento é uma coisa que só tem a nos  beneficiar, o governo vem exigindo muita coisa, e a gente que é pescador tem que lutar pelo nosso direito e tem que provar o que realmente pesca”.

Para Seu Clarindo, pescador da comunidade pesqueira e vazanteira de Canabrava em Buritizeiro (MG), também às margens do Rio São Francisco, a experiência do automonitoramento garantiu o acesso a direitos: “O automonitoramento da produção da nossa atividade pesqueira artesanal é uma ferramenta muito importante para nós pescadores e pescadoras artesanais, pois nós podemos usar com muita confiança para a comprovação da nossa atividade, registrando assim a produção da nossa pescaria, para saber também o nosso investimento. Com esses registros das pescarias nós temos uma prova muito importante para brigar contra as investidas do governo, principalmente essas portarias que vem pra difamar, e tornar inviável a pesca artesanal”.

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