Projeto de lei 2.159/2021 fragiliza o licenciamento ambiental no país, ignora comunidades tradicionais e pode abrir caminho para novos desastres ambientais, um verdadeiro retrocesso. Será “mãe de todas as boiadas” que passará por nós
Assessoria de Comunicação do CPP | Fotos: Agencia Brasil
O Senado Federal pautou para votação, nesta semana, o Projeto de Lei n.º 2.159/2021, que altera profundamente o sistema de licenciamento ambiental brasileiro. O texto, aprovado na Câmara dos Deputados em 2021, é considerado por organizações da sociedade civil, movimentos sociais e pesquisadores como um dos maiores retrocessos socioambientais desde a Constituição de 1988. O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), que acompanha a realidade das comunidades pesqueiras e tradicionais em diversas regiões do país, alerta: se aprovado como está, o PL coloca em risco o futuro de territórios, ecossistemas e modos de vida que resistem historicamente à lógica da destruição ambiental.
A proposta busca instituir uma “Lei Geral do Licenciamento Ambiental”, mas, na prática, enfraquece o principal instrumento de controle prévio de atividades com potencial de causar danos ao meio ambiente e à saúde humana. Entre os pontos mais críticos estão a possibilidade de autolicenciamento por empresas, a dispensa de licenças para diversos tipos de empreendimentos, incluindo atividades agropecuárias, e a redução drástica da participação social e do papel de povos e comunidades tradicionais nos processos de licenciamento.
O que está em risco?
O PL 2.159/2021 cria um cenário de fragilização do controle ambiental. Segundo análise do Instituto Socioambiental (ISA) e do Observatório do Clima (OC), o texto permite que atividades como pecuária, agricultura e manutenção de infraestrutura deixem de passar por qualquer tipo de licenciamento, mesmo quando seus impactos ambientais são reconhecidamente significativos. Além disso, introduz a figura da autodeclaração, em que o próprio empreendedor atesta, sem avaliação técnica prévia, que está apto a operar, o que esvazia o papel fiscalizador do Estado.
Outro ponto alarmante é a ameaça à proteção das comunidades tradicionais. O texto restringe a obrigação de consultar as autoridades envolvidas apenas aos casos de territórios indígenas e quilombolas que estejam oficialmente reconhecidos. Desta maneira, os órgãos encarregados do reconhecimento territorial não serão consultados nos casos de territórios indígenas e quilombolas em processo de regularização fundiária.
Ademais, o PL é completamente omisso sobre possíveis impactos a territórios de outros povos e comunidades tradicionais (PCTs), como os pescadores e pescadoras artesanais, não prevendo qualquer forma de consulta a autoridades envolvidas em seu reconhecimento.Isso ignora os direitos garantidos pela Constituição e pela Convenção 169 da OIT.
Para além da manifestação das autoridades envolvidas, o projeto legislativo também não prevê a escuta direta aos povos e comunidades tradicionais potencialmente atingidos pelos projetos em licenciamento.
Outra ameaça está na exclusão da necessidade de autorização dos órgãos gestores de unidades de conservação (UCs) para empreendimentos que impactem estes espaços protegidos, requisito presente na legislação atual. As UCs também serão impactadas pela determinação que suas autoridades envolvidas (ICMBio e órgãos estaduais e municipais competentes), apenas se manifestarão em casos de empreendimentos que estejam dentro de suas áreas, excluindo casos em que as unidades sejam impactadas por empreendimentos em seu entorno.
Diversas comunidades pesqueiras vivem nas unidades de conservação, em equilíbrio e harmonia com o meio ambiente, e estariam ainda mais ameaçadas pelos impactos de grandes empreendimentos.
Retrocesso jurídico e ameaça às águas
O projeto também dispensa a necessidade de outorga de uso da água para obtenção de licença ambiental, o que abre brechas para a exploração predatória de recursos hídricos sem qualquer controle técnico ou institucional. A proposta, se mantida como está, também autoriza a renovação automática de licenças por meio de simples formulário on-line, ignorando a necessidade de vistorias e análises técnicas — uma medida que poderia, por exemplo, ter evitado tragédias como as de Mariana e Brumadinho (MG).
Segundo o Observatório do Clima, a proposta é “repleta de inconstitucionalidades” e contraria decisões do Supremo Tribunal Federal, que já declarou a obrigatoriedade de licenciamento para atividades com potencial de dano ambiental. O STF reconhece que a ausência desse processo viola o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição.
Impactos diretos sobre as comunidades pesqueiras e ribeirinhas
As comunidades acompanhadas pelo CPP — pesqueiras, quilombolas, ribeirinhas e vazanteiras — já enfrentam as consequências de um modelo de desenvolvimento que impõe obras e empreendimentos sem consulta e sem reparação adequada. O avanço do PL da Devastação pode legalizar essa violação histórica, deixando ainda mais desprotegidos os territórios que garantem o sustento, a cultura e a espiritualidade de milhares de famílias.
O enfraquecimento do licenciamento ambiental pode ainda acelerar o desmatamento, a contaminação das águas e o colapso dos ecossistemas costeiros e fluviais, impactando diretamente a pesca artesanal e a segurança alimentar das comunidades. Para o CPP, trata-se de uma ameaça frontal à vida dos povos das águas, que não pode ser ignorada.
A quem interessa esse projeto?
A pressa na votação do PL no Senado levanta suspeitas sobre os interesses que movem a proposta. A flexibilização das regras atende ao lobby de grandes empreendimentos da mineração, do agronegócio e da infraestrutura pesada — setores historicamente associados a conflitos socioambientais, grilagem de terras, violações de direitos e destruição de biomas inteiros.
Se transformada em lei, a proposta tende a gerar um aumento de judicializações, insegurança jurídica para empreendedores sérios, e desequilíbrio entre as esferas federativas. Em vez de oferecer segurança e clareza, o PL 2.159/2021 cria um cenário de caos normativo, com cada estado ou município podendo decidir o que exige ou não licenciamento.
CPP: Licenciamento ambiental é instrumento de vida
O CPP reafirma que o licenciamento ambiental não é uma burocracia inútil, mas um instrumento essencial para a proteção da sociobiodiversidade, dos ecossistemas, dos biomas e da natureza em sua plenitude. É por meio dele que se impõem limites aos empreendimentos e se garantem os direitos das populações que vivem, cuidam e dependem desses territórios. Neste momento de crise climática se agravando o licenciamento ambiental precisa ser mais restritivo que o atual.
O CPP se soma às vozes de resistência que exigem a rejeição do PL 2.159/2021 em sua forma atual e convoca todas as comunidades pesqueiras, pastorais, organizações populares e aliados da causa socioambiental a se manterem mobilizados. O que está em jogo é o direito de viver com dignidade nos territórios — com águas limpas, peixes e mariscos vivos, floresta em pé e respeito à cultura dos povos das águas.