Procuradoria Geral da República do MPF recebe os 200 pescadores e pescadoras artesanais na Plenária sobre Violações de Socioambientais em Comunidades Tradicionais Pesqueiras.
Assessoria de Comunicação do CPP- Lígia Apel | Fotos: Andressa Zumpano - CPT e Lorenza Strano - Cáritas Crateús CE
Denunciar as realidades e aflições que passam pescadores e pescadoras artesanais em seus territórios pesqueiros foi o objetivo da Plenária sobre Violações Socioambientais em Comunidades Tradicionais Pesqueiras, realizada dia 22, na Procuradoria Geral da República (PGR) do Ministério Público Federal (MPF), em Brasília. O evento é uma atividade do Grito da Pesca 2019, ação de mobilização e incidência política do Movimento Nacional dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, o MPP.
Os pescadores e pescadoras artesanais são uma categoria profissional de grande importância para o Brasil, pois é dessa modalidade de pesca que provêm, aproximadamente, 70% do abastecimento de pescado no país. Também porque a pesca artesanal tem baixo impacto ambiental, garantindo a sustentabilidade dos ecossistemas pesqueiros.
Com esse reconhecimento, o Procurador Geral da República, Felício Pontes, abriu a plenária, dizendo que o momento é único para a PGR ouvir os profissionais da pesca artesanal. “Dificilmente se consegue reunir pescadores e pescadoras do Brasil todo representados num único evento. É uma oportunidade muito difícil de acontecer. Hoje, temos essa oportunidade de ouvir de viva voz os problemas e os desafios que são enfrentados por vocês. Por isso, não vamos perder essa chance”, disse o procurador, afirmando que as lideranças presente têm credibilidade perante o MPF. “As pessoas que estão aqui são encaradas por nós do Ministério Público como líderes das comunidades de pescadores e pescadoras artesanais do Brasil inteiro. Então, é uma oportunidade importantíssima para nós”, declarou.
Animado com as expectativas que os pescadores e pescadoras demonstravam pelo que o MPF pode oferecer-lhes, Pontes apresentou sua função enquanto procurador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, que tem o objetivo de “coordenar, integrar e revisar o exercício funcional na instituição relativo aos direitos e interesses dos povos indígenas e de outras minorias étnicas” e populações tradicionais. Participaram, também, a Dra. Carla Daniela Leite Negócio, como assessora jurídica da seção e a pescadora Josana Pinto Costa, Coordenadora do MPP, que conduziu a Plenária. Para os debates, a Mesa contou com os pescadores Antonio Jorge do Amor Divino de Souza (BA), Maria das Dores Silva (MG) e Antonio Vieira (SC), e com a Secretária Nacional do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Ormezita Barbosa de Paulo.
A importância do RGP e as dificuldades para adquiri-lo
O pescador Antonio Jorge, mais conhecido como Jorginho, de Maragojipe (BA), fez a primeira apresentação das violações de direitos que sofrem os pescadores e pescadoras. A mais grave, porque dela decorrem outras violações, é a suspensão da emissão do Registro Geral de Pescador (RGP) desde 2012. Para Jorginho, essa é uma situação de extrema gravidade porque afeta diretamente a vida do pescador e da pescadora. “É um documento tão importante para o pescador como é a Carteira Nacional de Habilitação para o motorista”, explica o pescador. “Para dirigir é preciso ter a habilitação. Para pescar é preciso ter o RGP. Quando a gente é pego no mar sem essa licença, somos presos, perdemos nossos apetrechos de pesca, perdemos o pescado que já tivermos pescado e, também, não temos acesso a direitos trabalhistas como o seguro defeso, ao seguro reclusão, auxílio acidente, auxílio maternidade e a gente não consegue se aposentar”.
Para os pescadores que tiveram suas carteiras suspensas por algum motivo e que precisam refazê-las, Jorginho conta que o processo está muito injusto: “antes, o INSS reconhecia a declaração da entidade representativa como prova de que ele é pescador, hoje não reconhece mais como prova plena, o que dificulta a comprovação de que exerce a profissão. Além disso, quando ele refaz a carteira, o sistema o caracteriza como pescador iniciante e não contabiliza os anos anteriores como profissional para fins de aposentadoria”. Jorginho também avalia com preocupação a situação dos pescadores jovens. “Para os jovens a situação é ainda mais grave, pois se esse jovem não tem acesso ao RGP, ele não pode pescar e não tem acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários. As ameaças de perda de território, o avanço do narcotráfico e a especulação imobiliária chegam às comunidades assediando os jovens. Se ele não tem acesso aos direitos enquanto profissional da pesca, ele terá que procurar outras formas de se sustentar e aí acaba sendo seduzido por esses empreendimentos”, ponderou.
A pescadora Maria das Dores Silva, conhecida como Dora, lembrou que, além das dificuldades apontadas por Jorge, o acesso à internet e a apresentação de Declaração de Pescado mensalmente inviabiliza a renovação do RGP. “É muito difícil para o pescador que mora distante das sedes de suas cidades estar todo mês na associação ou na Colônia. Para muitos, o deslocamento é longo e caro. E para aqueles que não tem acesso à internet, é preciso ter apoio pessoal de alguém”, relata Dora.
Mulher pescadora: a mais atingida
Ficou evidente nos depoimentos que as violações de direitos trazidas pelos pescadores e pescadoras para o PGR-MPF são muito sérias e que todos os pescadores são afetados de “forma bastante cruel”. Mas, há certo consenso de que as mulheres pescadoras sofrem mais do que os homens. Doenças são adquiridas com facilidade no decorrer de suas vidas pela própria natureza da função: seus corpos ficam mergulhados nas águas e se expõem ao sol e chuva por várias horas durante o dia, assim como executam movimentos repetitivos que levam a graves lesões.
Estarem vulneráveis às doenças provenientes dessas situações remete ao Estado o dever de dar atenção especial a essas mulheres. No entanto, o que se identifica nos testemunhos é exatamente o contrário. O descaso nas políticas públicas e a discriminação no atendimento são evidentes.
A pescadora Maria das Dores (MG) aponta a discriminação exercida pelos atendentes dos serviços públicos a partir da aparência da pescadora. “Quando chegamos à repartição cheirando a peixe, suja e rasgada, a gente é atendida. Com mau humor e, em alguns casos, com hostilidade, mas atendem. Mas, se a pescadora chegar com a unha pintada ou o cabelo arrumado ou com um sapato de salto, eles já dizem que ‘essa aí não é pescadora, não’ e colocam mais dificuldades no atendimento”, relata.
Célia Gomes de Farias, pescadora do Rio Grande do Norte, contou que levou muitos anos para conseguir seu auxílio doença e precisou de diversos laudos, inclusive psiquiátrico pelo quadro de depressão que desenvolveu depois de tantas idas e vindas para apresentar as burocracias exigidas. “Por que ficava muito tempo na água desenvolvi dois miomas uterinos e tumores subcutâneos na perna e costas. Pelos movimentos repetitivos adquiri hérnias de disco e por muito tempo pressionando as pernas estou com duas veias obstruídas. Mesmo comprovando tudo isso, só consegui o benefício depois de apresentar o Atestado Psiquiátrico por conta da depressão grave que desenvolvi”, relatou Célia, acrescentando que dos 12 meses recomendados pela perícia, foi beneficiada com apenas três. Disse também, que ainda aguarda as cirurgias de desobstrução das veias e a histerectomia. “Tem muita gente na fila. Espero que quando conseguir as cirurgias, não seja tarde demais”, explica preocupada.
Descaso do Estado é intencional
No Brasil existem, aproximadamente, um milhão e meio de pescadores artesanais, segundo a Secretária Nacional do CPP, Ormezita Barbosa, que diz ser um número significativo para o movimento dos pescadores, mas não para o poder público. “Um milhão e meio de pescadores é bastante significativo no conjunto da sociedade, embora esse número esteja sendo desconstruído, nos últimos anos, pelo estado brasileiro”, explica Ormezita, lembrando que “esses homens e mulheres ocupam áreas importantes para a sociobiodiversidade do país como um todo, e esses territórios têm se encontrado em situação de grande expropriação e de conflitos”.
A secretária informa que as análises feitas no interior do MPP e da instituição de apoio, o CPP, levam à percepção de que as dificuldades impostas e a burocracia exigida para emissão de documentos e para acesso a direitos previdenciários, especialmente o RGP, não ocorrem por acaso. “Tudo isso traz um impedimento no acesso a direitos básicos e fundamentais, previdenciários, e a omissão na resolução dos problemas por parte do governo compõe um pacote de ações para, justamente, tornar inviável a vida no território pesqueiro. A vulnerabilidade a que estão expostas faz parte desse pacote que visa tornar essas pessoas invisíveis e forçar a saída delas de seus territórios, porque essas áreas são de grande interesse econômico”, argumenta Ormezita.
Na sequência das manifestações, representantes de cada estado presente fizeram suas denúncias sobre a realidade de violação de direitos que suas comunidades e territórios pesqueiros estão submetidos. Cada um apresentou a realidade específica de suas localidades. Mas muitas violações são comuns a todos. Por isso, foram unânimes em concordar que as dificuldades impostas pelo poder público são estratégias de pressão intencionais para tornar suas vidas inviáveis e favorecer fazendeiros, grandes empreendimentos e a aquicultura empresarial. “O poder econômico está presente em nossos territórios e o poder público não resolve os problemas que enfrentamos” sustenta Luzinal Gomes, pescador do Amapá, que faz a denúncia de que em seu estado “os fazendeiros cercam lagos e lagoas com cerca elétrica para proibir os pescadores de pescar”.
Nos depoimentos também apareceram problemas de expropriação dos territórios pesqueiros, especialmente nos estados do Nordeste, com a instalação de parques eólicos e o turismo em larga escala.
O petróleo nos mares nordestinos e chegando ao sudeste
Na segunda parte da Plenária, pescadores e pescadoras dos vários estados presentes se pronunciaram sobre o derramamento do petróleo nas praias do litoral nordestino e que já está chegando no Espírito Santo. Lailson Evangelista (PE), Gileno Nascimento da Conceição (BA), Erivan Bezerra (RN), Antonio Severo (PI), Givanilda Santos (SE), Martilene Rodrigues de Lima (CE), Davi Sá (MA) e Manuel Bueno Severino (ES) relataram suas histórias e os problemas consequentes desse crime socioambiental que continua sem explicações. Muitas vidas relatadas nas histórias estão inviabilizadas em sua existência enquanto pescadores artesanais e tradicionais.
Diversas manifestações relataram a indiferença dos poderes públicos que estão ignorando o problema, deixando pescadores e pescadoras sem seguro defeso e sem dinheiro por conta da queda das vendas de pescados, o que está prejudicando a sobrevivência das famílias.
Também relataram que pessoas voluntárias, entre elas moradores e visitantes, já apresentaram problemas de saúde ao contribuir com a limpeza das praias. Essas situações estão silenciadas pelos órgãos públicos e pelo comércio, que só se preocupam com o destino do turismo. “É inadmissível que os governantes estejam apenas preocupados com o turismo e não olhem para a situação dos pescadores, que vivem da pesca”, falou Antonio Severo, do Piauí, ao se referir às notícias que saem na imprensa.
Para Martilene Rodrigues, pescadora e Coordenadora do MPP no Ceará, sua preocupação é com a situação de todos, mas o que mais lhe aflige são as mulheres que, na sua opinião, são as mais afetadas. “Não digo que os pescadores estão melhores, mas para mim, a primeira imagem que chegou na minha cabeça com a notícia desse crime social e ambiental foi a das mulheres pescadoras e marisqueiras, que são as mais afetadas. O produto de seu trabalho está comprometido. Suas vidas estão comprometidas, porque é só o que essas mulheres sabem fazer, pois sempre viveram da pesca e do marisco”.
As preocupações traduzidas pelos depoimentos se referem ao tempo que está passando e a cada dia, a venda do pescado fica mais prejudicada, pois a sustentabilidade dos ecossistemas e da alimentação das pessoas correm sérios riscos. Os responsáveis ainda não foram identificados e não foi implementada nenhuma medida para amenizar a vida desses povos pesqueiros tradicionais.
Mais uma vez, a constatação é de que há algo de intencional na omissão do governo em tomar qualquer medida. Para Maria José Pacheco, agente de pastoral do CPP, regional Bahia, “a forma como o estado e também a justiça está lidando com o problema, não tem sido com a emergência e urgência que precisa ter esse caso”.
Pescadores e Pescadoras fizeram um apelo comovente ao MPF para que faça pressão junto aos poderes legislativo e executivo para que solucionem esse problema dos povos do mar, pois estão vivenciando uma calamidade sem precedentes.
O Apoio que vem do PGR
A coordenadora nacional do MPP, Josana Pinto, fechou as falas dos estados com várias denúncias de violações, muitas delas em comum, sofridas em todos os lugares. Agradeceu a acolhida do MPF, enalteceu a disposição e prestatividade do procurador Felício Pontes e solicitou empenho nas ações, a partir desta Plenária. “Ao chegarmos aqui no plenário, vocês nos disseram para estar em casa e nos sentirmos bem. Agradecemos, mas afirmamos que para nos sentirmos bem, além de nos receber e nos ouvir, é preciso que nossas reivindicações e necessidades sejam acompanhadas pelo MPF”.
Depois de ouvir todas as denúncias, demandas e necessidades dos pescadores e pescadoras artesanais, o Procurador Geral da República, Felício Pontes, disse que "a radiografia do Brasil trazida para o MPF mostra que teremos muito mais trabalho do que pensávamos". Aceitando a solicitação de Josana e assumindo o compromisso de acompanhar as ações que dali se encaminharem, Pontes sugere uma divisão das demandas: "uma nacional, que são os problemas relacionados com a emissão de RGPs e o Projeto de Lei que já está em tramitação no Congresso Nacional. Deve ser emitida uma Nota Técnica com impressões do MPF para que os deputados apreciem o Projeto como uma questão de justiça”. Outro encaminhamento sugerido pelo procurador é em relação às especificidades dos estados. “O MPP, sugiro, deve encaminhar aos procuradores federais, nas regiões, para que abram processos com as demandas específicas e ouçam os pescadores", disse o procurador, apresentando assim o compromisso do MPF com a pesca artesanal.
Em relação ao derramamento de petróleo no litoral nordestino, Pontes foi enfático ao dizer que é preciso que “haja indenização o mais rápido possível, uma indenização caracterizada como alimentar”, e explicou: “quando a gente vai na justiça e fala que aquela indenização é alimentar quer dizer que ela não pode esperar, porque caracteriza o alimento como sobrevivência dessas famílias”.
Pontes também sugeriu envolver os procuradores dos estados: “propor a eles que entrem logo com essas ações e que a gente forme um fundo, ou alguma coisa assim, com as colônias dos pescadores, o movimento dos pescadores, com aqueles que trabalham nessa área, para que possam gerir esse fundo e, com isso, as pessoas que estão passando necessidades nesse momento possam ter o mínimo para sua sobrevivência”.
O procurador, animado com a possibilidade desses encaminhamentos, reiterou o compromisso da 6ª Câmara do MPF com os pescadores e pescadoras artesanais e considerou que “há ações que são urgentes e acho que o que nós aprendemos com as coisas que foram propostas pelo governo federal neste ano e com a imensa degradação social e ambiental com esses acidentes (ou incidentes), é que há necessidade de trabalharmos juntos e com mais força”, concluiu, desejando que essas ações possam ser efetivadas o mais rápido possível.