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Em Brasília, seminário reúne pescadores e pescadoras artesanais contra os avanços do petróleo

Evento promovido pela Campanha Mar de Luta e pelo CPP debateu os impactos dos conflitos socioambientais e do crime do petróleo de 2019, os vazamentos constantes e o avanço da exploração fóssil sobre os territórios e modos de vida das comunidades pesqueiras

10-10-2025
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Texto e fotos: Henrique Cavalheiro - Assessoria de comunicação do CPP e Campanha Mar de Luta

Pescadores e pescadoras artesanais vindos de diferentes estados do Brasil, atingidos pelo crime do petróleo de 2019 e pelos constantes vazamentos e ameaças da indústria fóssil, se reuniram nesta quarta-feira, 8 de setembro, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) para o Seminário “Pesca Artesanal, Conflitos Socioambientais e Exploração de Petróleo no Brasil”, promovido pela Campanha Mar de Luta e pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP).

O encontro reuniu representantes de comunidades tradicionais pesqueiras, pesquisadores, movimentos sociais, agentes de pastoral, representantes do governo federal e organizações socioambientais, que debateram os impactos da exploração de petróleo sobre os territórios pesqueiros e denunciaram a ausência de reparação ao crime do petróleo de 2019, o maior desastre ambiental da história da pesca artesanal brasileira.

Pescadores e pescadoras em resistência

Durante o seminário, pescadores e pescadoras de diversos estados relataram a realidade das comunidades que seguem vivendo com os impactos do petróleo, como a contaminação das águas, a perda de renda e a insegurança alimentar. Participaram representantes de estados atingidos pelo crime de 2019, de regiões que estão atualmente sendo impactados pelos constantes vazamentos, e de territórios atualmente ameaçados pela expansão da exploração petrolífera na Margem Equatorial e na Foz do Amazonas.

Os relatos destacaram como a ausência de políticas públicas de reparação agrava as desigualdades e o abandono das populações tradicionais. As falas reforçaram ainda a importância da memória coletiva e da resistência popular para impedir que novos crimes socioambientais se repitam.

Mesa 1 – Comunidades tradicionais pesqueiras e conflitos, ameaças e resistências

Neste diálogo, o Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), representado por Ivo Poletto, debateu os direitos da natureza como uma nova forma de encarar o momento atual, retirar do centro do debate o egocentrismo das pessoas, e encarar a natureza como um todo que ao desiquilibrar um dos fatores, todo o restante é impactado. Nesta lógica, mudam os valores e os conceitos, pois tudo é comum e direito de todos e todas.

Também compôs a mesa o secretário-executivo do CPP, Gilberto Lima, que apresentou o Relatório 2024 de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil, documento que reúne denúncias de violências e violações enfrentadas pelos povos das águas, incluindo a devastação provocada pelo petróleo nas comunidades pesqueiras. Segundo Gilberto, “o Caderno de Conflitos não é só denúncia. Ele é também ferramenta de mobilização, formação e incidência política.” Ele destacou ainda que o relatório evidencia que “os povos das águas não são vítimas, mas sujeitos políticos que lutam por territórios livres e protegidos, por políticas públicas adequadas e por uma transição energética justa, que respeite os modos de vida tradicionais e o direito à consulta”, salientou Lima. 

A marisqueira Helena do Nascimento, conhecida como Leninha, da Associação de Pescadoras Artesanais Mangue Mulher de Maracaípe (PE), compartilhou sua trajetória de luta na defesa da comunidade e do território, afetados tanto pelo crime do petróleo de 2019 quanto pela construção de um muro na praia e pela instalação de câmeras de monitoramento que restringem a livre circulação das marisqueiras. Em sua fala, Leninha destacou a importância de ocupar espaços de diálogo e denúncia: “A mesa pra mim foi importante pra falar do conflito do nosso território, pra poder trazer força, sabedoria e determinação para as comunidades, né?”, e completou: “Acredito que vai trazer muita visibilidade, apoio, sabedoria e conhecimento pra gente, em todas as comunidades e territórios onde há pessoas ameaçadas”, disse Leninha.

Mesa 2, intitulada Pesca artesanal e exploração de petróleo: o crime de 2019, derramamentos constantes e o avanço da exploração na Foz do Amazonas

Para representar os atingidos pelo crime do petróleo de 2019, compôs a mesa o pescador baiano Gileno Nascimento, que relembrou os dias de angústia e desespero com a chegada das manchas de óleo nas praias em 2019 e as duras consequências enfrentadas pelas comunidades pesqueiras desde então. Ele destacou que o crime do petróleo deixou marcas profundas e permanentes nos territórios, nos corpos e na vida dos pescadores e pescadoras artesanais. “Várias situações nem foram registradas, então a gente tem que ficar muito atento a toda essa questão”, afirmou.

Gileno também fez um chamado à resistência, reforçando que os povos das águas não esquecerão o que aconteceu. “Somos defensores de direitos humanos, da natureza, e a gente vai seguir à frente. Vamos à luta”, declarou, reafirmando o compromisso da Mar de Luta e das comunidades atingidas em seguir denunciando as injustiças e defendendo os territórios.

A pescadora Mariana Cruz, do Coletivo Caiçara, representando os povos das águas do litoral paulista, região constantemente impactada por vazamentos de petróleo, relatou as múltiplas violências vividas pelas comunidades da costa, que convivem com manchas de óleo nas águas, nas praias e nos manguezais. Em sua fala, Mariana criticou a lógica das condicionantes ambientais impostas às comunidades, afirmando que “a partir do momento que a comunidade aceita uma condicionante, ela está aceitando a destruição. Quanto mais condicionante, mais destruição”, denunciou Cruz.

Ela também comentou a ausência de políticas públicas e o agravamento das desigualdades provocadas pela distribuição dos royalties do petróleo, dizendo que “a riqueza dos royalties é muito ruim para a saúde. Quem tem dinheiro tem mais, e quem não tem fica mais precário ainda”, disse. Mariana relatou ainda o drama vivido pelas famílias da Baía do Araçá, em São Sebastião (SP), onde há um depósito de resíduos da exploração de petróleo. “As pessoas vivem em cima do óleo. Tem gente com câncer, problemas de pele e doenças respiratórias, e nenhuma pesquisa fala sobre isso”, afirmou.

Também na mesa, a pesquisadora Louise Machado, do Grupo de Pesquisa em Saúde, Ambiente e Trabalho e Sustentabilidade em Comunidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA), apresentou os resultados de sua tese de doutorado sobre os impactos do petróleo no litoral baiano e na pesca artesanal, destacando o agravamento das desigualdades e as violações de direitos provocadas pela exploração.

Segundo Louise, o crime do petróleo de 2019 embora tenha sido reconhecido como uma emergência de saúde pública, “houve um processo de negligência do sistema de saúde”, pois muitos pescadores e pescadoras expostos ao óleo “não encontraram preparo nem acolhimento nos serviços públicos”, disse. Louise também denunciou os efeitos estruturais da indústria do petróleo nas comunidades: “A falta de políticas públicas é gravíssima, e os royalties aumentam a desigualdade, porque quem tem dinheiro tem mais, e quem não tem fica ainda mais precarizado”, denunciou Machado

A coordenadora de Oceano e Águas do Instituto Internacional Arayara, Kerlem Carvalho, apresentou o estudo “Do Mar à Mesa”, elaborado pela organização, que analisa os impactos da pesquisa sísmica para a exploração de petróleo sobre a biodiversidade marinha e os meios de subsistência das comunidades pesqueiras.

Segundo Kerlem, “o petróleo não traz problemas apenas quando é explorado; ele causa danos desde a sua procura”. Ela explicou que a sísmica é o processo de prospecção que utiliza potentes explosões sonoras debaixo d’água para identificar áreas com potencial de exploração. “Mesmo quando o poço ainda não foi perfurado, o barulho da sísmica já perturba todo o ambiente marinho. O estrondo é tão intenso que se propaga a grandes distâncias, atingindo peixes e outras espécies”, destacou.

Kerlem também alertou para as restrições territoriais impostas às comunidades pesqueiras durante essas operações. “Enquanto uma plataforma de petróleo impede a passagem de embarcações num raio de 500 metros, a sísmica bloqueia áreas de até 6 milhas náuticas, onde o pescador não pode atravessar, sob pena de multa”, afirmou.

A coordenadora de Campanhas de Oceano do Greenpeace Brasil, Mariana Andrade, destacou os riscos e contradições da exploração do petróleo, lembrando que o discurso de desenvolvimento usado para justificar a indústria fóssil tem produzido mais desigualdade, dor e destruição nos territórios. Ela citou os casos de São Sebastião e Ilhabela (SP) como exemplos de municípios ricos em arrecadação, mas profundamente marcados por desigualdades sociais. “Esses lugares foram iludidos por essa conversa sobre desenvolvimento, mas hoje vivem sem sistema de saúde estruturado, com moradias precárias e vulneráveis a desastres ambientais que tiram vidas”, afirmou.

A representante do Greenpeace classificou os constantes desastres ambientais e os derramamentos de petróleo como evidências da falência desse modelo. “Todos esses eventos nos ajudam a dizer com clareza: não queremos petróleo nas nossas zonas costeiras, nem em nenhum outro lugar. Sabemos o que ele traz: dor, doença, conflito e desigualdade”, enfatizou.

Mesa 3, Instrumentos de proteção e reconhecimento de direitos das comunidades tradicionais pesqueiras frente às ameaças e conflitos

A pescadora Ana Hilda, integrante da coordenação nacional do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), destacou em sua fala o papel histórico da categoria na conquista do Seguro-Defeso, política pública criada em 1993 após anos de mobilização popular. “O seguro não é favor, é um direito conquistado. Hoje, continuamos lutando para que esse direito seja respeitado, mesmo com tantos ataques”, afirmou. Ela denunciou o uso político do benefício ao longo dos anos e criticou as recentes mudanças trazidas pela Medida Provisória 1303/2025, que coloca o seguro sob limitação orçamentária e reforça estigmas contra os pescadores e pescadoras.

Ana Hilda também falou sobre o preconceito e o racismo estrutural que marcam o olhar do Estado sobre as comunidades pesqueiras. “Dizem que filho de pescador não pode ser doutor, advogado ou estudar, mas temos filhos formados que seguem morando no território e continuam pescando. Isso não nos impede de ser quem somos”, disse. Para ela, as comunidades continuam resistindo: “Mesmo doentes, cansados e esquecidos, vamos seguir lutando. Nós temos vida, temos profissão e não vamos desistir de estar nos nossos territórios”, finalizou.

Também na mesa, a integrante do GT-Mar da Frente Parlamentar Ambientalista, Letícia Camargo, apresentou uma análise sobre a conjuntura ambiental no Congresso Nacional e os riscos que ameaçam os direitos das comunidades tradicionais. Em sua fala, alertou para o avanço de projetos de lei que fragilizam a proteção da Mata Atlântica e flexibilizam o licenciamento ambiental, especialmente para empreendimentos considerados de interesse energético. “Esse projeto permite a supressão de vegetação em áreas da Mata Atlântica e simplifica o licenciamento para grandes obras, sem mencionar clima ou comunidades tradicionais”, destacou. Letícia alertou ainda que, com a chamada “licença flash”, grandes empreendimentos poderão ser aprovados em prazos muito menores, ignorando impactos socioambientais e o direito à consulta. “Estamos diante da tentativa de desmontar o coração da política ambiental brasileira: o licenciamento ambiental. Se esse instrumento cai, abre-se o caminho para o desmatamento, os desastres e a violação de direitos”, afirmou.

O representante da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), Luciano Ferreira, apresentou a atuação do órgão na regularização fundiária de comunidades tradicionais, destacando o uso do Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) como principal instrumento de garantia territorial para pescadores e pescadoras artesanais. Segundo ele, o desafio é “desburocratizar e acelerar nossos processos, que todos sabem que são muito lentos”, citando o esforço recente para entregar novos TAUS. Apesar do tom otimista, sua fala revelou as limitações estruturais e políticas que ainda dificultam o acesso das comunidades pesqueiras à titulação de seus territórios, o que é um direito.

Luciano reconheceu que a falta de demarcação dos terrenos de marinha e a especulação imobiliária nas zonas costeiras criam disputas constantes entre comunidades, empresários e o próprio Estado. “Hoje o país não delimitou claramente essas áreas, e é uma briga nossa com os empresários, que dizem que aquilo é deles, e a União diz que é nossa”, afirmou. A declaração expôs o contraste entre o discurso institucional e a realidade vivida pelas comunidades, que seguem ameaçadas pela omissão do Estado e pela lentidão dos processos de reconhecimento. Mesmo com promessas de avanços, o cenário descrito reafirma a denúncia das organizações presentes: o direito ao território das comunidades pesqueiras segue negado e submetido a interesses econômicos.

O petróleo ameaça a vida e o futuro dos povos das águas

Durante o seminário, as falas dos pescadores e pescadoras reafirmaram que o petróleo não traz desenvolvimento, mas destruição. Para as comunidades, a defesa das águas, dos manguezais e da pesca artesanal é também a defesa da vida e do direito de existir nos territórios.

O evento encerrou lembrando os 6 anos do crime do petróleo de 2019 e reafirmando o compromisso das organizações presentes com a luta por justiça socioambiental, reparação integral e respeito às comunidades tradicionais pesqueiras.

Linha de ação: