Com a presença do CPP e lideranças locais, a roda de conversa discutiu a obra de hidroterramento, destacando a exclusão das comunidades tradicionais e os prejuízos socioambientais enfrentados por moradores e trabalhadores da região
Assessoria de Comunicação do CPP
Na manhã do dia 16 de janeiro, no Centro Pastoral da Vila de Ponta Negra, em Natal - Rio Grande do Norte, aconteceu a roda de conversa “Engorda da Praia de Ponta Negra: Percepções da Comunidade”, com o objetivo de promover a partilha de experiências e reflexões sobre os impactos da obra de hidroterramento da orla, iniciada em 2024. O evento contou com a participação de lideranças pesqueiras, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), o Conselho Comunitário da Vila de Ponta Negra, nadadores, usuários da praia, integrantes da disciplina de Saúde e Cidadania (Saci) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e representantes dos mandatos populares do vereador Daniel Valença (PT) e da deputada federal Natália Bonavides (PT).
Durante a roda de conversa, alunos da UFRN, da disciplina de Saúde e Cidadania conduziram entrevistas com grupos que utilizam a praia de Ponta Negra, direta ou indiretamente, para coletar relatos e experiências. Entre as preocupações apontadas, trabalhadores ambulantes destacaram o impacto na segurança dos turistas e banhistas, temendo que isso afete negativamente o comércio local. Eles também mencionaram os riscos de afogamento e as mudanças nas correntes marítimas, resultantes das alterações nas características naturais da praia, além de cortes e machucados causados pelo surgimento inesperado de material calcário na areia.
Outros participantes chamaram atenção para os problemas com esgotos recorrentes, que se agravaram na última semana devido às chuvas. Esse cenário provocou alagamentos em partes da obra de hidroterramento, evidenciando os desafios e as consequências negativas da intervenção na orla.
Moradores da Vila levantaram questionamentos sobre as prioridades da obra de engorda da praia. Embora a justificativa oficial do projeto seja conter o processo de erosão, eles destacaram que a duna símbolo da cidade, o Morro do Careca, será a última área a ser contemplada pelo processo.
Ausência de Consulta Prévia viola direitos das comunidades pesqueiras
Pescadores e pescadoras artesanais, juntamente com agentes do CPP, manifestaram preocupação com a ausência da Consulta Prévia, Livre e Informada, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um procedimento obrigatório antes do início de obras que impactam comunidades tradicionais. Eles criticaram a exclusão da participação social no debate sobre o projeto de engorda da praia, ressaltando que a falta de diálogo reforça a sensação de invisibilidade destas populações locais.
A praia de Ponta Negra é muito mais do que um ponto turístico; ela carrega um profundo significado cultural, histórico e espiritual para Natal e para o Rio Grande do Norte. Para Valeska Sophia, agente do CPP/RN, as alterações promovidas pela obra de engorda trazem mudanças drásticas que impactam o ecossistema, a paisagem e a rotina daqueles que têm uma conexão profunda com a praia. “As alterações drásticas através da obra no ecossistema, na paisagem e na rotina de quem se conecta com a praia carregam prejuízos potenciais que vão além do que conseguimos medir”, afirmou. Ela destacou que pescadores e pescadoras artesanais estão entre os mais prejudicados, enfrentando uma realidade de incerteza econômica e vendo seu modo de vida ameaçado. “Eles vivem em harmonia com o ritmo da natureza e dependem profundamente de seu equilíbrio, mas agora, de maneira abrupta, enfrentam mudanças que desconsideram o valor inestimável de sua conexão com o mar”, concluiu.
A presidente do Conselho Comunitário, Lia Araújo, ofereceu um panorama histórico sobre o processo de ocupação da Praia de Ponta Negra. Lia enfatizou que o atual projeto de urbanização da região é resultado de uma ocupação desordenada, impulsionada pelo turismo predatório e pela lógica neoliberal, que privilegia interesses econômicos em detrimento da preservação ambiental e do bem-estar das comunidades locais.
Entenda o caso: um histórico de polêmicas e ameaças ambientais
A obra, popularmente conhecida como engorda, carrega consigo uma série de polêmicas e questões ainda não esclarecidas, desde sua concepção até o início das intervenções. O primeiro pedido de Licença Ambiental para a obra data de 2017 pela Prefeitura Municipal de Natal, responsável pelo empreendimento, sob a justificativa de combater o avanço do mar, os efeitos da erosão costeira e a perda significativa da faixa de areia durante as marés cheias.
O Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (IDEMA), órgão estadual responsável pela emissão das Licenças de Instalação e Operação (LIO), solicitou à Prefeitura uma série de documentos técnicos obrigatórios, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). Esses documentos são fundamentais para garantir a segurança socioambiental de obras de grande porte. Em 2022, a Prefeitura apresentou a documentação exigida, mas com lacunas significativas, incluindo a ausência de programas de assistência social para os trabalhadores da praia e de medidas claras para mitigar potenciais danos ambientais. O IDEMA identificou pelo menos 40 pontos críticos e deu um novo prazo de 30 dias para que a Prefeitura respondesse aos questionamentos.
Após o envio das respostas, a Prefeitura pressionou pela emissão da licença para início imediato da obra. No entanto, o Ministério Público Federal recomendou ao IDEMA que não emitisse a licença, uma vez que a comunidade pesqueira tradicional da Vila de Ponta Negra não foi consultada, violando o direito de Consulta Prévia, Livre e Informada, garantido desde 2004 pela Convenção 169 da OIT.
Pressão política marca concessão de licença ambiental para obra
O prefeito de Natal, Álvaro Dias, acompanhado de vereadores, apoiadores e membros da Prefeitura, invadiu a sede do órgão ambiental em uma tentativa de pressão e intimidação. Sob determinação judicial, a licença foi concedida, e a obra teve início em agosto de 2024, com previsão inicial de conclusão para dezembro do mesmo ano.
No entanto, logo no início dos trabalhos, descobriu-se que a área indicada nos estudos ambientais para a retirada de areia não era compatível com a execução da obra, gerando prejuízos financeiros e atrasos. Em resposta, a Prefeitura, por meio do Decreto nº 13.192 de setembro de 2024, decretou situação de emergência na praia. Essa decisão permitiu a utilização de uma nova área de captação de areia, conhecida como jazida, que não passou por estudo técnico, uma irregularidade grave para um projeto desse porte.
Com o novo cenário, a previsão de conclusão da obra foi estendida para o final de janeiro ou início de fevereiro de 2025, coincidindo com a alta temporada de verão, quando a praia recebe um grande fluxo de turistas, moradores e visitantes em férias. Esse período de maior movimentação intensificou os impactos negativos, gerando preocupações ambientais, sociais e econômicas para os trabalhadores da região, principalmente pescadores e pescadoras, ambulantes e pequenos comerciantes, que dependem diretamente das condições da praia para sua subsistência.
A pesca artesanal exige respostas e respeito das autoridades
A insatisfação dos pescadores e pescadoras artesanais com a obra de engorda é expressa por Beto, que mora na comunidade de Ponta Negra há mais de 50 anos e vive da pesca artesanal. Ele destacou sua decepção com a falta de escuta das autoridades desde o início do projeto. “O motivo de não nos ouvir na primeira instância, que a gente fez um protesto, e até hoje está aí fazendo o que eles querem, jogando areia e mexendo nas áreas que não são permitidas, prejudica todo o meio alimentar e as espécies de peixe e corais”, lamentou.
Beto também chamou atenção para os impactos na fauna local, mencionando que espécies como búzios, corruptos, tatuís, siris e lagostins foram severamente afetadas. “Tudo morto. E agora, saber onde vão desovar os peixes e os alimentos de outros peixes?”, questionou. Ele reforçou o impacto direto na pesca artesanal, que é a principal fonte de sustento de muitas famílias locais. “A gente luta tanto pelo nosso pão através da pescaria, e agora está sendo prejudicada com essa engorda. Espero que as autoridades vejam que somos humanos, somos nativos daqui de Ponta Negra, e gostaríamos de ter uma resposta sobre isso”, finalizou.