Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique | Por Luís Brasilino
Antes mesmo de se recuperarem dos impactos causados pelas manchas de óleo que atingiram a costa brasileira em 2019, os pescadores artesanais precisam lidar com um nova crise econômica, ambiental, sanitária e social com a pandemia de Covid-19. Em geral localizadas em áreas com grande atividade turística, suas comunidades assistiram à chegada de pessoas, potencialmente contaminadas, em fuga das grandes cidades com o início da quarentena. Além disso, como toda a sociedade, ressentem-se da falta de apoio público e da queda da atividade econômica, que provocou o fechamento de feiras e mercados onde vendiam seus produtos.
Um quadro agudo e dramático para um setor que, no entanto, há décadas enfrenta problemas gerados pelo modelo de desenvolvimento brasileiro, seja ele mais neoliberal, seja mais desenvolvimentista. Na entrevista a seguir, Ormezita Barbosa, diretora executiva do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), faz uma análise da conjuntura do setor da pesca e das condições de seus trabalhadores do Brasil: além as crises recentes, a política anti-ambiental do governo federal, os impactos da exploração do petróleo, do agronegócio, da mineração e das grandes obras de infraestrutura, mudanças climáticas, lições das gestões petistas entre 2003 e 2016 e as demandas dos pescadores para o próximo período.
Quais os principais impactos e as preocupações dos pescadores com a epidemia do coronavírus?
As comunidades tradicionais pesqueiras estão localizadas em sua maioria em áreas de grande interesse turístico. Nesse período de pandemia muitas pessoas têm procurado essas comunidades como refúgio e essa circulação expõe os pescadores/as a possíveis contágios da Covid-19. Por isso em vários locais as comunidades têm construído bloqueios comunitários, evitando esse trânsito de pessoas que vêm de centros urbanos, enquanto medidas possíveis e necessárias em um cenário de ausência de informações precisas e do poder público. Outro problema enfrentado é o acesso direto à rede de básica de saúde, principalmente para as comunidades localizadas em áreas rurais mais afastadas. Muitas dessas comunidades não possuem posto de saúde e as que possuem em sua maioria não têm médicos disponíveis para o pronto atendimento. Casos de gripe não são devidamente investigados, então é difícil confirmar se há casos de Covid-19. Ressaltamos que uma das principais reivindicações dos pescadores/as é o acesso urgente ao teste para coronavírus para quem apresente sintomas. Essa medida essencial garante segurança e saúde local e possibilita o monitoramento de possíveis casos. As comunidades tradicionais pesqueiras têm provocado e se movimentado para chamar atenção do poder público em relação às especificidades dessas comunidades e suas dificuldades em cumprir uma quarentena com direitos básicos. Nesse sentido ressaltamos que o acesso a sabão, álcool e material de higienização é imprescindível neste momento. Por fim um problema relatado pelas comunidades é a dificuldade na comercialização do pescado. Muitas não têm para quem vender porque as feiras e mercados estão fechados, e não têm onde armazenar o peixe, o que tem à interrupção da pesca para evitar prejuízos com a manutenção dos barcos. A pesca artesanal sustenta o povo trabalhador na sua grande maioria, é o alimento saudável que chega na mesa e faz parte do hábito alimentar dos brasileiros. Nesse sentido, é importante garantir que o pescado continue chegando na mesa dos que mais precisam. Os governos em âmbito municipal, estadual e federal devem comprar e distribuir esse pescado para as redes de assistência, para as iniciativas populares solidárias. Nesse momento é possível garantir essa rede que se estende dos territórios pesqueiros e chegam nas grandes periferias.
Estamos falando de uma nova tragédia, mas os pescadores já vivem uma situação dramática desde a chegada das manchas de óleo no litoral brasileiro no fim de 2019. Como está essa situação agora?
As comunidades seguem até hoje sendo impactadas pelo derramamento de petróleo e esses impactos se agravam com a pandemia do coronavírus. Muitas comunidades foram atingidas e não foram corretamente identificadas pelos órgãos ambientais. Ressaltamos que o que ocorreu na costa nordestina é de impacto nacional, não é apenas um problema do Nordeste mas do povo brasileiro que não teve acesso a informações precisas sobre o ocorrido. Dividimos os impactos em quatro blocos: econômicos, ambientais, sanitários e sociais. No campo econômico as comunidades diminuíram desde setembro de 2019 a comercialização em mais de 80%. Com medo de consumir o pescado, a população parou de comprar o peixe. Agora em fevereiro registrou-se um aumento na comercialização, contudo, com o coronavírus, voltou-se ao mesmo patamar anterior.
Do ponto de vista ambiental sabemos que os impactos são de grande proporção e de longo prazo. Ecossistemas inteiros foram atingidos e não se sabe exatamente o tempo que levará para se recompor. Áreas importantes de manguezais, bancos e corais que são áreas de reprodução do pescado foram alteradas e modificadas pela presença dos reagentes químicos, agora presentes nesses ambientes. A ausência de estudos, pesquisas e monitoramento permanente nas regiões atingidas revela um cenário de abandono e adoecimento permanente. As comunidades pesqueiras foram abandonadas pelos órgãos ambientais responsáveis pela proteção dos ecossistemas e da vida que acontece nessas geografias das águas por uma política de lucro e interesse do turismo de massa. As comunidades relatam permanentemente que o petróleo continua chegando nas praias, que os impactos são visíveis no cotidiano.
Na área da saúde, não há um processo de monitoramento para identificar problemas de longo prazo nos muitos pescadores e pescadoras que tiveram contato direto com o petróleo. A falta de estudos independentes no pescado, nas águas e nas pessoas pode acentuar problemas de contaminação, como visto em locais que foram atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana.
Por fim, tem os impactos causados pela identificação incorreta dos atingidos que deveriam ser compensados pelo auxílio emergencial disponibilizado pelo governo federal. O acesso foi limitado aos pescadores que possuem o Registro Geral da Pesca (RGP), deixando muitas pessoas, especialmente mulheres, de fora do auxílio. As comunidades continuam em luta pelo direito à informação e indenizações justas por causa da interrupção de suas atividades e as incertezas em torno desse crime ambiental e social. O que se vivenciou nesse período em diversas comunidades foi a militarização do crime e o silenciamento permanente das vozes de mulheres e homens que conhecem as águas profundamente. É preciso mais do que nunca um olhar atento para a luta dessas comunidades pelo direito à vida e a uma pesca sustentável sem a agenda neoliberal do mercado nas questões ambientais.
O CPP surgiu durante a ditadura militar. Resumidamente, qual a trajetória da pastoral de lá até os dias de hoje?
O CPP nasce a partir do apelo das comunidades de romper com o processo de exploração que os pescadores viviam. Nesse período marcado pela violência e silenciamento, a igreja teve um papel importante na mobilização e organização dos trabalhadores por meio das comunidades eclesiais de base. Dom Helder Câmara teve um papel central no apoio a atuação do CPP tanto na profecia de sua fala que chegou aos rincões do Brasil, como também acolhendo as reuniões dos pescadores no seminário de Olinda. Nos anos 1980, a pastoral atuou de forma intensa no processo da Constituinte, articulando uma mobilização chamada de Constituinte da Pesca, mobilizando pescadores e pescadoras de todo o Brasil com a pauta central do direito à livre organização. Dos anos 1990 aos dias atuais o CPP segue mantendo sua missão se ser presença profética junto às comunidades, contribuindo com a organização comunitária e fortalecendo o protagonismo dos homens e mulheres das águas. O CPP se tornou referência nacional no tema da pesca artesanal e na atuação com pescadores e pescadoras artesanais. Resultado disso é a ampliação do trabalho para novos estados do país e ampliação de parcerias nacionais e internacionais. A defesa dos territórios pesqueiros, o enfrentamento aos grandes projetos de desenvolvimento e a incidência na política de pesca são elementos centrais na nossa atuação. O CPP está presente em dezesseis estados do Brasil atuando em comunidades pesqueiras rurais e urbanas. Compomos em conjunto com outras pastorais sociais a Comissão Pastoral Episcopal para a Ação Sociotransformadora da CNBB.
O trabalho dos pescadores está intimamente ligado ao meio ambiente. Como você tem analisado a política anti-ambiental conduzida pelo governo federal?
Faz parte do histórico do CPP se somar, construir e articular as lutas do campo ambiental popular. Estamos acompanhando e sentindo no cotidiano de nossa ação pastoral nos territórios os impactos violentos da política anti-ambiental do governo Bolsonaro. Nesse sentido, ressaltamos a estratégia em curso de desmonte da política ambiental em todos os seus sentidos com o objetivo claro de facilitar a implantação de grandes projetos econômicos nos territórios de povos e comunidades tradicionais. Os setores mais beneficiados dessa política de morte são as mineradoras e o agronegócio, que expõem diversas comunidades pesqueiras e toda a população a geografias tóxicas de permanente adoecimento coletivo. Há algum tempo os processos de licenciamento ambiental vêm sendo fragilizados e alterados, impedindo a participação efetiva das comunidades nos processos de decisão sobre seus territórios, assim como não identificando de forma transparente e acessível os impactos desses empreendimentos na vida dos pescadores/as, bem como na atividade pesqueira. A eliminação de ministérios estratégicos da política integral de proteção ao meio ambiente e a militarização e o desmantelamento de instituições como Ibama, ICMBio e Incra marcam um período de retrocesso na definição de unidades de conservação, principalmente as reservas extrativistas que são uma importante estratégia de defesa do território e de proteção dos bens comuns. As políticas anti-ambientais do governo federal estão orientadas para a restrição de financiamentos para funções elementares de proteção e fiscalização, para a eliminação de programas importantes, bem como para a utilização de medidas que restringem a participação das organizações da sociedade civil no monitoramento das ações governamentais. A política do governo tem sido de atuar em várias frentes com o objetivo de entregar áreas ricas em biodiversidade a grandes grupos econômicos. Dentre essas frentes podemos destacar: revisão e alteração do marco legal ambiental, propagação de uma ideologia anti-ambiental e incitação ao ódio contra os povos e comunidades que guardam esses territórios e a criminalização das organizações e de quem luta em defesa do meio ambiente. Defender os territórios tradicionais pesqueiros no atual contexto tem sido um risco de vida para muitos pescadores/as artesanais.
Apesar do atual governo se notabilizar pelo descaso com a preservação da natureza, há décadas que a situação ambiental vem se deteriorando no Brasil. No caso dos pescadores, uma questão particularmente sensível é a exploração de petróleo na costa brasileira. Como equacionar essa relação entre o avanço da indústria petrolífera e a necessidade de preservação dos ecossistemas marinhos e do trabalho dos pescadores?
Em 2016 o Conselho Pastoral dos Pescadores lançou o Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil. A proposta era dar visibilidade às identidades tradicionais presentes nesses territórios, suas lutas e os impactos do modelo de desenvolvimento que sacrifica territórios inteiros, promovendo o empobrecimento das comunidades. Os relatos e debates em torno dos impactos da indústria petrolífera são recorrentes em nossos espaços organizativos por causa da invisibilidade em torno dessas violações. A exploração de petróleo representa para os pescadores/as artesanais destruição dos espaços de pesca e insegurança econômica e alimentar em razão do impacto dessa indústria sobre as espécies. Esse modelo de petro-dependência ameaça a permanência dessas comunidades em seus territórios, pois suas condições de existência são todas comprometidas. Os impactos da indústria petrolífera nas comunidades pesqueiras se dão inicialmente com a atividade sísmica durante o processo de aquisição de dados e perfurações de poços. Os pescadores/as relatam que de imediato há uma redução significativa de peixes por causa da intensidade e do impacto dessa atividade. Os impactos relatados pelas comunidades onde esses estudos chegam dão conta de uma drástica redução da produção. Outros impactos são a restrição de acesso às áreas de pesca durante o levantamento de dados. A exclusão de áreas fundamentais para os pescadores/as causa de imediato danos econômicos de dimensão familiar e comunitária, já que a pesca artesanal abastece diversas comunidades próximas. Há relatos de danos causados aos apetrechos de pesca por causa da presença dos cabos sismográficos. Os impactos se agravam ainda mais com os ruídos e derrame de óleo durante a operação desses estudos iniciais. Diante dos impactos relatados pelas comunidades é importante destacar a necessidade de se ter estudos e matrizes de dados que demostrem os impactos da indústria petrolífera na pesca artesanal. Todos esses impactos sísmicos iniciais se prolongam com o processo de instalação de plataforma petrolífera. Os pescadores/as artesanais têm se organizado e construído frentes de resistência e re-existência nesses contextos, pois pautar o modelo econômico e os males não é tarefa fácil, é uma luta desigual e prologada muitas vezes. Os esforços das comunidades pesqueiras são todos voltados para a manutenção, defesa e proteção dos seus territórios e de suas existências. Essas comunidades estão interligadas e com profundo conhecimento dos espaços de pesca, dos berçários, da presença de encantados, dos locais sagrados, e esses modos de vida o capital não compreende.
Além da indústria petrolífera, o agronegócio também é uma ameaça para as comunidades de pescadores em diferentes partes do país. Como que se dá essa relação nem sempre evidente entre pesca e agricultura?
Destacamos que os pescadores/as artesanais em todo o Brasil têm intensificado lutas no último período por soberania alimentar e territorial em defesa da pesca artesanal contra o agronegócio, que representa a presença alimentos envenenados e geneticamente modificados na mesa dos brasileiros. É importante destacar que a aquicultura é uma das matrizes intersetoriais do agronegócio brasileiro, bem como as suas modalidades representadas pela piscicultura (criação de peixe), carcinicultura (criação de camarão), ranicultura (criação de rãs) e malacocultura (moluscos, ostras, mexilhões, escargot) e em menor escala a criação de algas. Estamos diante de um modelo alimentar que não é seguro e que tem provocado uma série de violações de direitos humanos, econômicos, ambientais e culturais nos territórios pesqueiros. O agronegócio da aquicultura se organiza de forma extensiva, semi-intensiva e intensiva, colocando em movimento uma cadeia de produção que se relaciona diretamente com a indústria de rações e com a introdução de um ramo da ciência que produz linhagens geneticamente modificadas. Esse modelo de produção é uma profunda ameaça à soberania alimentar e à saúde do povo brasileiro. Os pescadores/as artesanais expõem as contradições visíveis entre pesca artesanal e agronegócio/aquicultura para pautar o direito ao consumo de pescado saudável. Existe uma profunda e ancestral relação entre agricultura e pesca artesanal, intimamente ligadas com os hábitos alimentares e culturais dos territórios pesqueiros e parte significativa da biodiversidade representada em seus fazeres cotidianos. Os pescadores/as artesanais estão ao lado dos povos originários, quilombolas, sem-terra, pequenos agricultores e toda diversidade do campesinato brasileiro nas experiências agroecológicas, na produção de alimentos saudáveis e no uso sustentável dos bens comuns presentes em suas territorialidades. Os pescadores/as têm cunhado no cotidiano o significado de territorialidade tradicional pesqueira, ideia que nasce das lutas concretas por direitos e dignidade. É necessário reconhecer a integralidade da territorialidade pesqueira com as diversas culturas que cultivadas e incentivadas em seus territórios enquanto estratégia comunitária de soberania alimentar de seus territórios e do povo brasileiro. Os pescadores/as estão tecendo com outros trabalhadores/as projetos alternativos ao agronegócio que se apresenta enquanto projeto modernizador para o campo, floresta e águas brasileiras. Essa “modernização” significa de fato para os povos e comunidades tradicionais o avanço de um modelo de insegurança alimentar, que usa sementes transgênicas, agrotóxicos de forma intensa, monocultura, ração de peixes, larvas geneticamente modificadas. É uma modernização violenta e insegura que ameaça o direito a alimentos saudáveis. Somente a produção da agricultura camponesa e da pesca artesanal é capaz de gerar vida e cuidado coletivo com os territórios, com os bens comuns.
A mineração predatória praticada no Brasil, especialmente pela Vale, é outra atividade que gera impactos não tão evidentes para os pescadores. Como esse tipo de exploração os afeta e o que você poderia falar sobre a situação atual das comunidades que vivem na região do Rio Doce?
A exploração mineral no Brasil vem se intensificando e tem como marco o período que ficou conhecido como “superciclo” das commodities provocado pelo crescimento da atividade de extração e do valor de mercado do minério em âmbito internacional. Esse crescimento se deu graças aos investimentos públicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que financiou a implementação de empreendimentos e grandes projetos (minerários, petrolíferos, ferroviários, hidrelétricos, portuários) que logrou benefícios para parte da elite brasileira, principalmente as ligadas ao agronegócio e à mineração. Esse modelo desenvolvimentista foi responsável pelo aumento significativo de conflitos e violência nos territórios de povos e comunidades tradicionais em todo o Brasil. As experiências e relatos de comunidades inteiras que foram transformadas em zonas de sacrifício são muitos. Diversas comunidades foram removidas e reassentadas em outros territórios que não correspondiam aos seus modos de vida e reprodução social e cultural. A vida de muitas lideranças foi ceifada e tantas outras lideranças ameaçadas tendo muitas das vezes que se deslocar para outras regiões do país, a perda e privatização significativa de espaço de produção, da atividade pesqueira e outras ligadas aos modos de vida dos pescadores/as agravaram mais ainda o contexto. Esse foi e tem sido o legado violento e sangrento de um modelo econômico que sacrificou vidas em nome de uma lógica que transformou esses territórios em zonas tóxicas e outras em desertos. Esse cenário de violações ainda é vivo na memoria e no cotidiano dos pescadores e pescadoras artesanais. Nós do CPP escutamos no percurso da nossa ação pastoral muitos relatos de adoecimentos por parte de muitos pescadores/as. As atividades em torno da mineração têm impacto direto na pesca artesanal e nos modos de vida nesses territórios. A tendência é que com a política anti-ambiental do governo essa atividade se amplie mais ainda com a total flexibilização do licenciamento ambiental e com o sucateamento dos órgãos ambientais que deve possibilitar um relaxamento na fiscalização do planejamento, construção e operação nas obras de expansão da mineração em todo o território nacional. O desastre provocado pela Samarco, Vale, BHP Billiton com o rompimento da barragem de rejeito de minério que atingiu os estados de Minas Gerais (35 municípios) e Espírito Santo (5 municípios) ainda é visível ao longo da bacia do Rio Doce. Os pescadores/as afirmam que a lama ainda continua descendo e impactando as suas vidas todos os dias e interrompendo a principal fonte de renda familiar oriunda da pesca artesanal realizada na calha do Rio Doce e seus afluentes como Rio do Carmo, Rio Gualexo do Norte, Córrego Santarém, nos lagos, manguezais e no mar. O CPP tem acompanhado os pescadores/as do Rio Doce na sua luta diária pelo direito de ter direitos. Nesse sentido uma das pautas centrais dos pescadores/as é o direito à justa reparação com o objetivo de reconstruir seus modos de vida alterados pelo desastre. A experiência da perda, dos conflitos comunitários e da ausência de direitos básicos como o acesso à água potável tem perpassado o cotidiano de comunidades inteiras que se encontram em um verdadeiro campo minado, sem acesso a informações precisas em relação ao grau de contaminação da água e do pescado e com alto nível de adoecimento, sem direito ao acesso a atendimento especializado. Muitos pescadores tem relatado o surgimento de ferimentos e coceiras no corpo desde o contato com água contaminada. Os danos, prejuízos e perdas e a quebra violenta de diversas relações sociais, culturais e econômicas na vida dos pescadores/as são imensuráveis. No entanto a mobilização pela garantia de direitos é fundamental, bem como fazer valer o direito à autoidentificação, que tem como princípio a consciência de pertencimento a uma comunidade que tem modos de vida próprios. A luta organizada dos pescadores tem se assentado nesses princípios coletivos frente às diversas violações de direitos que vêm ocorrendo em decorrência do desastre. Um exemplo é a política de critérios adotada pela Fundação Renova, que parte do princípio de que o pescador de fato é aquele que possui Registro Geral da Pesca, provando seu desconhecimento total das diversas realidades dos pescadores/as artesanais, pois suas identidades não são fruto de decretos ou de documentos do Estado, mas das suas práticas comunitárias e modos de vida enquanto populações ligada à atividade pesqueira. A metodologia utilizada pela Fundação Renova de aplicar questionários individuais, entrevistas e recolhimentos de documentos comprobatórios com objetivo de contabilizar e quantificar deixa de considerar as experiências coletivas, vivências, identidade e modos de vida que os pescadores/as experimentam. Acreditamos que tal lógica de controle e de definir quem é pescador e quem merece ser indenizado é parte de uma tecnologia de exclusão e burocratização de direitos necessários para pescadores/as atingidos/as pelo desastre. É preciso que a sociedade brasileira busque se aproximar da luta das comunidades tradicionais pesqueiras, estendendo laços de solidariedade contínuos a populações que têm seus direitos suspensos, violados, negados em nome do lucro.
Recentemente mega obras de infraestrutura, como a construção de hidrelétricas e a transposição do rio São Francisco, também impactaram fortemente comunidades de pescadores. Quais foram esses impactos? Existem alternativas a esse modelo de desenvolvimento?
Os impactos decorrentes do modelo de desenvolvimento expropriatório em nome do lucro acima da vida de comunidades inteiras revelam a vocação e natureza de um modelo econômico que é pautado na violação de direitos humanos de povos e comunidades tradicionais. Esses projetos provoca a desterritorialização de comunidades inteiras, alterando seus modos de vida e implementando decisões no território de interesses do capital, desconsiderando e descumprindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que determina a obrigatoriedade da consulta prévia em qualquer situação que afete os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Os pescadores/as artesanais são impactados diretamente por projetos ligados a atividades de mineração, hidrelétricas, instalação de portos, parques eólicos, privatização de espelhos d’água, turismo de massa, carcinicultura entre outros. Esses projetos alteram significativamente os modos de vida dessas comunidades pesqueiras, gerando inseguranças e incertezas no momento de instalação e permanência desses empreendimentos, pois a dinâmica territorial das relações constituídas são alteradas por terceiros que chegam e modificam essas espacialidades e experiências comunitárias. São diversos os exemplos do aumento massivo do consumo de álcool, de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, do abuso sexual de crianças e adolescentes, do uso de drogas e da exposição das mulheres a diversas formas de violência. É o resultado desse modelo de desenvolvimento, da socialização da miséria e de criação de zonas de sacrifício nas quais governos e capital decidem quem deve morrer e quem deve viver. A luta pelo direito de existir e viver no campo, nas águas e na floresta segue viva e pulsante no campo brasileiro. E mais do que nunca que é preciso fortalecer iniciativas de bem viver que já acontecem, como as experiências agroecológicas, a pesca artesanal, a produção de alimentos da agricultura camponesa livre de agrotóxicos e o caso do PL 131/2020. Fruto de ampla articulação dos pescadores/as artesanais de todo Brasil, esse projeto de lei assegura reconhecimento, proteção e garantia do direito ao território de comunidades tradicionais pesqueiras, tido como patrimônio cultural material e imaterial sujeito a salvaguarda, proteção e promoção, bem como o procedimento para a sua identificação, delimitação, demarcação e titulação. Essas são iniciativas vivas que são bases para colocar em debate o modelo de desenvolvimento que temos e o que desejamos construir para garantir vida e dignidade para o povo brasileiro. O CPP tem feito o esforço coletivo com outras organizações para pensar, construir e alimentar a esperança para reacender a necessidade de se construir um projeto popular para o Brasil. Acreditamos que é possível a construção desse mutirão que repensa a vida e constrói possibilidades societárias. Mais do que nunca é preciso superar os projetos que colocam a humanidade e a vida no planeta em risco por iniciativas que ampliem perspectivas e não mercados.
Umas das principais consequências das mudanças climáticas é a elevação do nível dos oceanos. Como isso afeta o trabalho dos pescadores?
A preservação do território pesqueiro está ligada às relações ancestrais, culturais e afetivas entre seus habitantes e esses laços têm garantido a proteção dessa territorialidade, sem a qual a vida e as vivências comunitárias estariam ameaçadas. Mesmo com todo o cenário de violação de direitos humanos em seus territórios tradicionalmente ocupados, pescadores/as têm se dedicado a ações de preservação dos seus espaços diante das mudanças climáticas, perceptíveis cotidianamente nas águas, nos mangues e na pesca. São muitos os relatos da percepção dos pescadores/as artesanais das mudanças climáticas. Isso é possível por causa do conhecimento dos ciclos das águas e seus movimentos. Assim as mudanças são sentidas pelos pescadores/as no avanço da maré para áreas em que a mesma não chegava antes; na redução ou no prolongamento das quadras chuvosas em algumas regiões; na diminuição de peixes e sua diversidade. Outras mudanças observadas são: alteração nos movimentos da maré, aquecimento das águas, mudança no ciclo dos ventos. É importante destacar que as mudanças climáticas alteram a transmissão de conhecimentos tradicionais dos pescadores/as para os mais jovens, pois os pontos de pesca têm se alterado, as dunas movimentam muito, as quadras de chuva são incertas… tudo isso afeta o repasse de conhecimentos necessários que são parte do universo e dos encantos da pesca artesanal.
Muitas dessas atividades que geraram impactos negativos para os pescadores, como o avanço da exploração do petróleo, o agronegócio e as mega obras de infraestrutura, foram estimuladas pelos governos progressistas que tivemos no país entre 2003 e 2016. Muitas delas inclusive tornaram-se símbolo e motivo de orgulho dessas gestões. Que lições tirar desse período?
A primeira grande lição que fica desse período é que mais do que nunca é preciso retomar a ideia um projeto popular para o Brasil, que nasce das mãos e dos modos de pensar a diversidade que é o nosso povo e suas territorialidades onde a vida acontece. Foi nos governos neodesenvolvimentistas que se intensificaram as lutas por território dos povos e comunidades tradicionais neste país. Esse modelo de desenvolvimento só foi possível por causa da sua política de morte e aniquilação dessas comunidades, dos seus modos de vida e da sua forma de se relacionar com o território. A chegada desses empreendimentos significou a transformação desses territórios e diversos companheiros e companheiras foram brutalmente assassinados nesse período. A luta não parou, as contradições continuavam pulsantes em todos os territórios, foi uma opção desses governos impulsionar a política do agronegócio e não colocar no centro do debate a necessidade de uma profunda reforma agrária popular, demarcar os territórios indígenas e quilombolas, reconhecer e garantir direitos às diversas comunidades tradicionais que foram para o front em razão desse modelo de desenvolvimento que deixou marcas profundas na memória coletiva de diversas comunidades. Olhando a série Conflitos no Campo Brasil, organizada pela Comissão Pastoral da Terra, percebemos que os conflitos visibilizam diversas violências contra outros sujeitos do campo que antes não eram percebidos. Aprendemos nesse período que um dos caminhos que precisa ser feito é o da escuta profunda de saberes que são partilhados, vivenciados e construídos enquanto formas e práticas cotidianas de re-existir. Nesse período se constitui a Articulação Nacional de Povos e Comunidades, espaço que vem possibilitando encontros e ações integradas em nível local e nacional. O cenário de conflitos e violação de direitos humanos colocara em risco a vida de muitas lideranças comunitárias. Os aprendizados são muitos, mas destacamos que foi nesse período que conseguimos colocar em diálogo as diversas expressões e identidades existentes em nosso país. Isso possibilitou fortalecer articulações contra a política desses governos de ampliar, estender e flexibilizar a legislação ambiental para favorecer o agronegócio e os grandes projetos. A pergunta que fazemos todos os dias é desenvolvimento para quem? Essa pergunta orienta nossas ações e nossa articulação para colocar a centralidade na vida e na economia comunitária. Esta que sustenta um universo de pessoas e relações que pautam suas vidas pela relação harmônica e respeitosa com seus territórios.
Segundo a FAO/ONU, o consumo de peixes por pessoa no Brasil (entre 5 e 10 quilos por ano) está bem abaixo da média mundial (20,2 kg/ano). Qual o potencial e a importância desse setor para o país? O que fazer para estimular a pesca?
A pesca artesanal é responsável por 70% da produção que vai para a mesa do povo brasileiro. Essa produção fica em diversas comunidades e garante a soberania e a segurança alimentar, abastecendo o mercado nacional. Esse pescado vem do mar, rios e lagos espalhados em nosso país de dimensão continental. Nossa estimativa é que o Brasil possui cerca de 1,5 milhão de pescadores artesanais e a pesca em alguns lugares do país representa 80% da economia local. No Amazonas, o consumo de pescado é maior que média do país, chegando 93% da população que consome peixe pelo menos um dia na semana. Uma das primeiras medidas necessárias para garantir a manutenção desse setor é regularizar os territórios pesqueiros, ou seja, conceder a titularidade da terra e das águas a quem é de fato de direito. Uma das reivindicações dos pescadores/as artesanais é que se tenha uma estatística pesqueira para visibilizar o papel e a importância da pesca artesanal para o país. Ressaltamos que é importante considerar que a pesca artesanal é que coloca o peixe saudável nas mesas. Os produtos que têm origem na aquicultura, principalmente na psicultura, não são saudáveis por causa da presença de componentes químicos e do uso intensivo de ração na alimentação de espécies.
Luís Brasilino é editor do Le Monde Diplomatique Brasil.