Encontro reuniu agentes, assessorias e comunidades para debater instrumentos jurídicos, desafios e caminhos para garantir os direitos territoriais dos povos das águas
Texto: Assessoria de Comunicação do CPP | Fotos: Arquivo CPP
No dia 14 de maio de 2025, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) promoveu uma oficina nacional sobre regularização dos territórios tradicionais pesqueiros, reunindo agentes de pastoral, educadores populares, assessorias e lideranças comunitárias para debater estratégias de enfrentamento aos desafios fundiários. A oficina contou com as contribuições da pesquisadora Tatiana Gomes (UFBA) e do assessor jurídico Marcos Brandão (CPP-BA/SE).
A atividade teve início com uma mística que resgatou a fala da pescadora Ana Ilda na audiência pública da PEC 03 no Congresso Nacional e o poema do pescador artesanal Siri, ambos militantes do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), sobre viver fora do próprio território. A secretária de território e Meio Ambiente do CPP, Andrea Rocha, propôs a música da campanha pelo território pesqueiro, reforçando o compromisso coletivo com a causa, e em seguida explicou a programação do dia.
Realidades diversas, desafios comuns
No primeiro momento do encontro, agentes de pastoral de diferentes regionais compartilharam as realidades enfrentadas em suas regiões. Entre os relatos, surgiram questões como a morosidade nos processos para concessão de TAUS (Termo de Autorização de Uso Sustentável), o uso das Reservas Extrativistas (Resex) como alternativa de proteção territorial, as dificuldades para avançar com CCDRU (Contratos de Concessão de Direito Real de Uso) e os desafios para garantir as titulações quilombolas, muitas vezes travadas pela falta de recursos no INCRA.
Os relatos trouxeram experiências vindas de estados como Maranhão, Piauí, Bahia, Santa Catarina, Ceará, Minas Gerais e São Paulo. Apesar das diferentes realidades, foram destacadas preocupações comuns, incluindo a pressão constante de grandes empreendimentos, o avanço das eólicas offshore, as tentativas de privatização das praias e o enfraquecimento das políticas públicas voltadas para os territórios pesqueiros.
Reconhecimento de territórios: mais que regularização
Tatiana Gomes, assessora jurídica popular e professora da UFBA, apresentou uma reflexão crítica sobre o uso do termo “regularização fundiária” quando aplicado às comunidades tradicionais. Segundo ela, esse termo parte da suposição equivocada de que essas comunidades estariam em condição de irregularidade, ignorando o fato de que mantêm uma ocupação ancestral e equilibrada com a natureza, respeitando ecossistemas e modos de vida humanos e não humanos. Tatiana defendeu que, ao invés de “regularização fundiária”, o debate deve ser pautado pelo reconhecimento dos direitos territoriais, destacando que o território é muito mais do que um recurso econômico: ele envolve dimensões materiais e imateriais, desde a terra e a água até os valores culturais, espirituais e identitários.
A professora também resgatou a história das Reservas Extrativistas (Resex), lembrando que foram fruto direto da luta de seringueiros e seringueiras no Acre, que enfrentaram pistoleiros e latifundiários para defender a Amazônia, uma resistência que deu origem a um modelo jurídico que, ainda hoje, impede atividades como a mineração nesses territórios.
Tatiana alertou, ainda, para problemas estruturais graves, como a falta de orçamento adequado para políticas de reconhecimento territorial e a baixa execução dos poucos recursos existentes. Ela comparou os dados: enquanto políticas voltadas aos territórios quilombolas e indígenas enfrentam dotação orçamentária insuficiente e execução de apenas 19% a 25%, setores como o agronegócio, exemplificado pelo incentivo à exportação do café, receberam bilhões e tiveram execução orçamentária próxima a 80%. ““Eu não diria que há só um problema de destinação. Há um problema também de execução, porque esses poucos recursos que são destinados, eles não são completamente executados, ainda tem um problema adicional”, disse.
Ainda ressaltou que o problema não é apenas financeiro, mas político, apontando o Congresso Nacional, hegemonizado historicamente por elites comprometidas com interesses empresariais e grandes empreendimentos, como um entrave direto à garantia de direitos. Ela destacou ainda os impactos de legislações recentes, como o Decreto 576/2020, que facilita a cessão de águas públicas para a aquicultura industrial, e chamou atenção para os efeitos disso nas comunidades pesqueiras e nos corpos d’água. Para Tatiana, superar esses desafios exige não apenas mobilização comunitária, mas também mudanças profundas na forma como o Estado brasileiro distribui prioridades e recursos.
Práticas, estratégias e caminhos possíveis
Na parte da tarde, Marcos Brandão, assessor jurídico do CPP-BA/SE apresentou um panorama detalhado sobre os instrumentos de titulação e regularização dos territórios quilombolas, abordando as etapas, documentos necessários e desafios encontrados. Ele explicou os usos e limitações dos TAUS e das CDRUs e destacou as diferenças entre instrumentos como aforamento, usucapião e adjudicação compulsória. Marcos reforçou que, na prática, os direitos só são conquistados por meio de luta e mobilização coletiva, e que a experiência demonstra que esperar apenas pela aplicação da lei não é suficiente.
O debate se ampliou com perguntas e partilhas vindas de diferentes regiões, abordando temas como as comunidades deslocadas pelo lago de Sobradinho, os desafios das comunidades quilombolas em áreas urbanizadas e os impactos das políticas públicas locais. Ao final, Marcos ressaltou que cada instrumento jurídico tem suas especificidades, mas que nenhum substitui a necessidade de articulação política e pressão social constante.
Um compromisso coletivo em defesa dos territórios
A oficina nacional sobre regularização dos territórios tradicionais pesqueiros reafirmou o compromisso do CPP em fortalecer os saberes das comunidades, aprimorar a atuação das equipes regionais e multiplicar estratégias de incidência para garantir o direito ao território. Em um cenário de crescentes ameaças — como a expansão do agronegócio, da mineração, da exploração de petróleo, das energias fósseis e renováveis sem consulta livre, prévia e informada —, o reconhecimento e a defesa dos territórios das águas permanecem centrais para garantir a vida, a cultura e a soberania alimentar das comunidades tradicionais pesqueiras em todo o Brasil.
* As fotos desta matéria são de territórios pesqueiros e de manifestações e reuniões de comunidades exigindo a regularização de seus territórios.