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Mulheres do mar: pescadoras são a sustentação da pesca artesanal no litoral Norte de SC

Elas cuidam da casa e dos filhos, consertam redes, beneficiam e comercializam produção e ainda saem para pescar, em lagoas ou alto-mar.
21-07-2013
Imprensa: 

Notícias do Dia | Por Edson Rosa*

Luísa,Márcia, Néia, Alzira, Iraci, Marilene, Eliete, Dalila, Adriana…

Mais do que filhas ou esposas de pescadoras, elas representam uma classe praticamente invisível na economia familiar do litoral Norte de Santa Catarina. Cuidam da casa e dos filhos, beneficiam e negociam a produção e, na maioria dos casos, trabalham embarcadas até 12 horas por dia.

Saem cedo e sem hora para voltar. Passam frio, sede, fome, pegam chuva ou suam no sol escaldante em alto-mar. Puxam o barco e arrastam a rede com a força que tiram da alma, sem perder a ternura e a vaidade escondidas dentro de roupas surradas e desconfortáveis.

Privilegiadas, trabalham onde o rio encontra o mar, quando não chegam ao ponto onde o verde da água costeira não se mistura com o azul do atlântico. “O mar não tem limite para o pescador”, diz a jovem Adriana Zeplin, 24, a única com segundo grau completo na colônia de Balneário Barra do Sul.

Balneário Barra do Sul é também o endereço de Safira Cristina Mendes de Souza, a Neneca, 40, referência para as demais pescadoras da pequena cidade. Afastada do mar para cuidar da própria saúde e da família, a pescadora teve uma reviravolta na vida.

Criada com o que os pais extraíam do entorno da Ilha dos Remédios, até os 27 anos Safira costumava atravessar a nado os 1.470 metros até a praia da boca da barra. Depois, com fôlego de atleta, subia pela lagoa do Linguado até o portinho da família no rio Perequê. Mergulhava em busca dos mariscos mais grados e usava o arpão para fisgar garoupas adultas.

Hoje, a pescaria é lembrança na vida de Safira. Com artrose na coluna, ela está com os movimentos da perna esquerda cada vez mais restritos. Espera na fila do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), pela perícia médica e, quem sabe, aposentadoria.

Antropóloga faz novas amigas durante pesquisa

A antropóloga Rose Mary Gerber viu de perto como é a rotina delas. Foram 13 meses de convivência, entre 2010 e 2012, resumidos na tese “Mulheres e o Mar: Uma etnografia sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal no litoral de Santa Catarina”. Mais do que pesquisa, fez amizade. “É impossível manter apenas o vínculo profissional. A emoção fala mais alto, prevalece o elo fraternal, um carinho mútuo e para sempre”, diz.

Paciente e com a resignação comum dos evangélicos, Safira viu a chegada da doença como um sinal divino. “Às vezes, no mar, me questionava, me perguntava quanto tempo resistiria”, conta. Para Safira, se afastar do trabalho no mar significa começar nova vida. “Acho que, finalmente, chegou o momento de começar a ser dona de casa”, diz. Safira tem dois filhos – Elias Davi, de cinco anos, e Aline, 18.

Extensionista social da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Santa Catarina), Rose percorreu oito cidades, da Laguna, no Sul, a Itapoá, a última colônia de pesca ao Norte de Santa Catarina. Navegou em rios, lagoas, baías e no mar aberto, onde testemunhou a falta de reconhecimento de direitos sociais e previdenciários e, acima de tudo, a importância da presença feminina na preservação da pesca artesanal como atividade econômica e agregadora familiar.

As agruras não se resumem a enfrentar frio, fome, sede, tempo ruim e as armadilhas do mar. Nem o preconceito que dificulta o reconhecimento profissional e consequentes direitos previdenciários. A falta de autonomia, na maioria dos casos, é outro obstáculo. “Muitas não são proprietárias de embarcações ou redes, e não conseguem linhas de crédito”, explica a antropóloga.

Em suas andanças pelas colônias de pesca do Estado, Rose viu, também, que grande parte delas trabalha de forma sutil, muitas vezes nos fundos de casa, quase invisíveis. “São mulheres que pescam na informalidade em embarcações minúsculas, com poucos apetrechos e em condições precárias”.

Humildes e com baixa escolaridade, estas têm ainda mais dificuldades para obter o reconhecimento profissional junto ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social). Independentemente da diferença física de seus corpos, suas trajetórias de vida e experiências cotidianas.

Trabalho duro, mas fascinante

Dependendo do ambiente em que vivem, as pescadoras se dividem em três segmentos – as embarcadas, aquelas que vivem da coleta na beira d’água e as que trabalham em terra na Pescadoras SC | Foto: Marco Santiago/NDevisceração e beneficiamento dos pescados.

O trabalho mais árduo é feito a bordo, na busca a peixes diversos ou específicos e camarão, principalmente em mar aberto.

“Na baía ou na lagoa, também é sofrido, mas é água abrigada e redes e embarcações são mais leves”, completa Alzira Conradi Persiki, 52, que pesca na lagoa do Linguado, na Costeira da Barra do Sul, mas está na perícia após romper os tendões dos ombros ao cair da bicicleta, o veículo que na maioria dos casos substitui a canoa fora d’água. “A roda travou numa pedra e fui parar no chão”, sorri. Siris, ostras mariscos e berbigões são os principais produtos das que vivem da coleta na costa.

As que trabalham em terra estão inseridas em todas as etapas do processo que faz a pesca artesanal funcionar. Cuidam da limpeza e do beneficiamento, incluindo descasque de camarão, filetagem de peixes, desconchamento de ostras e mexilhões ou extração de carne de siri. Na maioria das vezes, são elas que administram a comercialização. “Lá em casa, quem cuida do dinheiro sou eu”, grita Adriana Santana, 39, que, quando não está no mar, atende em uma das bancas da feirinha de peixes da praia de Itapema do Norte, em Itapoá.

Última praia ao Norte de Santa Catarina, Itapoá estava com 14.577 habitantes no Censo de 2010. Destes, 640 são pescadores filiados à colônia Z 1 – a metade, mulheres. “Eles vão para o mar, mas elas trabalham mais. Também pescam, limpam e vendem, além de cuidar da casa”, confirma o presidente Abel Ferreira Gomes, que não tem dúvida: “a presença feminina ao lado dos maridos é o que sustenta a pesca artesanal no município”.

Maridos e camaradas em casa e no mar

Em Itapoá, elas pescam nas águas calmas do Pontal e Figueira do Pontal, pequenas comunidades da baía da Babitonga, ou no mar aberto, a cerca de duas milhas, ou 3,7 quilômetros da costa de Itapema do Norte e Barra do Saí, na divisa com o Paraná.

Centro turístico da cidade, é na praia de Itapema que elas estão um pouco mais organizadas. Com ajuda dos maridos, construíram e mantêm o “mercado do peixe”, feira com 48 boxes cobertos, a metade desativada, com bancas azulejadas, onde atendem a população local e visitantes.

Lá, o quilo do camarão rosa custa R$ 45, e também é boa a oferta de sororoca, bagre, robalo, pescada e a tainha da Babitonga. “Quando tem boa safra, vendemos para as cidades vizinhas – Garuva, Joinville, Guaramirim, Araquari, por exemplo – e até no Paraná”, diz Morgana de Jesus, 25, que trabalha na banca e “lá fora” com o marido José Roberto Nogueira dos Santos, o Pardal, 40, qu

Como a maioria dos pescadores, nem todas sabem nadar. É o caso de Iliete da Silveira, 47, que se reveza com o filho Maicon, 27, nas lidas com o marido Raul, 56. “Já caímos três vezes n’água. Graças a Deus, ele me trouxe de volta em todas”, diz Iliete, que na infância não gostava, mas era a única que podia ajudar o pai a pescar. Hoje, ama o que faz.e também leva a sogra, Simone de Jesus, 38, para pescar em alto-mar. “A mulherada merece um prêmio. Pescam junto, ajudam a consertar as redes, beneficiam e vendem o peixe, cuidam da casa e aturam os maridos”, reconhece Pardal.

“Adoro a sensação de liberdade que o mar oferece, o cheiro da maresia, o vento no rosto. Melhor, ainda, quando a rede vem cheia de peixes, e garante o pagamento das dívidas e a comida na mesa”, sorri. “Ela é uma guerreira”, complementa o orgulhoso Raul, enquanto embarca a rede e prepara a canoa para mais uma pescaria de sororoca e cavala.

Falta de apoio encarece preço do gelo

Pescadoras SC | Foto: Marco Santiago/NDNem tudo é beleza ou romantismo na vida destas famílias. Em Itapema do Norte, onde a pesca artesanal e o índice zero de poluição do mar são os principais atrativos turísticos de Itapoá, o apoio da prefeitura é praticamente nulo. Não há subsídio nem mesmo para baratear o preço do gelo produzido e vendido aos pescadores pela colônia local em máquina cedida pelo Ministério da Pesca.

“Pagamos R$ 4 pela caixa de 20 quilos, enquanto em São Francisco do Sul custa apenas R$ 1,50”, reclama Raul Silveira. Sem subsídio, o óleo diesel chega às embarcações a R$ 2,40 o litro. A diferença, segundo o presidente Abel Pereira Gomes, é que na cidade vizinha a prefeitura paga as contas de água e luz e o salário do funcionário contratado pela colônia. “Aqui, bancamos tudo”, critica Gomes, que mostra a fatura da Celesc com conta de R$ 1.100.

A suspensão dos financiamentos do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) para compra de embarcações e redes também afeta a pesca artesanal em Itapema. Sem critérios para liberação, falsos pescadores usaram “laranjas”, ou seja, nomes de profissionais humildes, para obter o dinheiro do governo federal. “Gastaram o dinheiro sem investir na pesca, e não pagaram o banco”, explica Iliete Silveira.

Exemplo do desinteresse municipal, segundo Adriana Santana Santos, foi dado na semana passada pelo prefeito Sergio Ferreira de Aguiar (PSDB). A falta de transporte inviabilizou a participação de 30 pescadoras em curso profissionalizante do Programa Mulheres Mil, do governo federal, no Instituto Federal de Educação Tecnológica, de Joinville, a 60 quilômetros de distância. Seriam duas viagens semanais que poderiam viabilizar antigo sonho da comunidade – a criação da cooperativa para beneficiar e escoar a produção de Itapema, Barra do Saí, Pontal e Figueira do Pontal.

Porto afastada comunidade da pesca

Aclamada por vocação porta-voz dos pescadores de Itapoá, Adriana Santana lembra que gelo e diesel caros não são os únicos problemas em Itapoá. “Na Barra do Saí Mirim, o assoreamento está inviabilizando a pesca. Precisa de dragagem permanente”, explica.

Nas comunidades de Pontal e Figueira do Pontal, o pesadelo começou em dezembro de 2010. As operações do porto privado de Itapoá restringiram a atividade pesqueira naquele trecho da baía da Babitonga, por determinação da Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil.

“Não levaram em conta o fato de terem ocupado nossos melhores pesqueiros. Tampouco o fato de a comunidade local não ter condições de se adaptar a outro tipo de atividade”, diz Adenilson Silveira Nunes, o Pretinho, 45, presidente da Associação dos Pescadores Artesanais de Pontal e Figueira do Pontal. Segundo ele, são 140 associados – a metade, mulheres. O porto, segundo ele, não oferece cursos profissionalizantes nem compensará a falta de trabalho na pesca. Baixa escolaridade e falta de qualificação profissional são causas do pequeno índice de aproveitamento da mão de obra local no píer. O diretor comercial do porto, Patrício Júnior, disse que o grupo só se manifestará depois de julgamento da ação judicial dos pescadores.

Para Márcio Martins, 32, o empreendimento significa a garantia de R$ 1.200 todo início de mês. Contratado como ajudante de contêiner, está entre os 10% da mão de obra local contratada pelo grupo Batistella. No entanto, mesmo passando parte do dia no cais, o novo portuário ainda se considera pescador.

Canoas adaptadas para o tamanho do mar

Das canoas de proa alta com motor de centro, para cortar as ondas que chegam a três metros em dias de vento nordeste em Itapema do Norte, apenas duas são originais, de um pau só. A maioria é produzida em fábricas paranaenses, em formas de fibra que mantém o modelo tradicional copiado pelos primeiros migrantes açorianos dos índios pescadores que habitavam o litoral antes dos europeus.

Uma delas, do casal Raul e Iliete Silveira, adernou na arrebentação em dia de mar ruim, e por pouco não causou uma tragédia. “A canoa emborcou em uma onda enorme e caímos na água. Felizmente, boiei e ele me resgatou”, conta Iliete, que voltou a navegar sem medo na proa ou conduzindo o leme na popa da Alfa. “Ela é muito segura”.

Apesar da religiosidade e do respeito pelo mar ser característica comum entre elas, a jocosidade com que enfrentam os riscos do dia a dia e a resignação diante de perdas inesperadas e irreversíveis chamou a atenção da antropóloga Rose Mary Gerber. “É o mesmo sentimento com o qual enfrentam a pobreza e a invisibilidade social”, diz.

Menores e bem mais leves, as outras canoas de Itapema do Norte têm design modernizado e, em alguns casos, se confundem com lanchas de veranistas. Como a usada pelo casal Morgana e Pardal. “Minha maior alegria é sair por este piscinão de Deus a fora, e voltar com nosso sustento”, diz o pescador. Tímida quando não está embarcada, ela apenas sorri para concordar com o companheiro.

*Artigo retirado do site Notícias do Dia. Publicação original.