Publicado originalmente na Agência Pública no dia 12/06/23 | Texto por Rayane Penha | Foto: Willy Miranda/Agência Pública
Cheguei a Oiapoque, município de fronteira com a Guiana Francesa, após 12 horas de viagem de ônibus, os últimos 200 quilômetros balançando no pequeno ramal que liga o final da estrada asfaltada à cidade. O dia havia amanhecido e já tinha o compromisso de encontrar seu Júlio Teixeira e alguns dos 300 pescadores registrados na colônia de pesca do município.
Ele falava para um público de cem homens e mulheres trabalhadores da pesca na região da foz do Amazonas sobre a importância de lutarem por capacitação e estarem sempre regulares com seus documentos de licença. Foi em 2005 que o pescador de 62 anos “saltou” do barco para assumir a presidência da colônia de pescadores e começou a reorganizar a atividade de pesca artesanal do município.
Seu Júlio chegou ao Amapá com 12 anos, em um barco de pesca vindo de Salvaterra, na Ilha do Marajó, no Pará, onde já trabalhava desde os 8. Quando chegou, se juntou a outros moradores da vila de pescadores do Taperebá, que ficava às margens do rio Cassiporé, dentro do Parque Nacional do Cabo Orange, a 18 horas de barco do município mais próximo, Oiapoque. “Lá era só pescador, era palafita, era ponte, não tinha terra firme. Foi lá que eu cresci e já fiquei trabalhando”, lembra.
Ele conta que nesse período, há mais de 40 anos, a Petrobras já estava na região realizando pesquisas: “A Petrobras, ela vem tentando na nossa costa há muitos anos. Eu era jovem ainda e já tinha a base da Petrobras lá na Vila do Taperebá, e eles estavam tentando perfurar cento e poucas milhas lá fora”, diz. Dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis corroboram as lembranças de seu Júlio e mostram que em 1969 a Petrobras já estava na foz do rio Amazonas, fazendo pesquisas de levantamento geofísico.
Ele e todos os pescadores da vila foram retirados do local no início dos anos 2000 por não ser legalmente permitido haver moradia dentro de um parque nacional. As mais de cem famílias migraram então para Oiapoque. Apesar de a maioria das famílias ter conseguido permanecer na pesca, muitas delas dependiam também da agricultura e enfrentaram dificuldades com a mudança para a cidade, como abuso de álcool e drogas. Muitos jovens, segundo seu Júlio, acabaram entrando para facções criminosas. É o medo que ele tem, que a situação de muitas famílias que vivem da pesca em Oiapoque piore caso haja algum derramamento de óleo e impossibilite a vida de quem “nasceu na pesca”.
Em agosto de 2021, a Petrobras entrou com um pedido de licença de operação no Ibama para explorar petróleo na foz do rio Amazonas, após o órgão ter negado os pedidos feitos pela dona anterior das concessões, a empresa francesa Total E&P. A área fica localizada a 175 km da costa do Amapá, na margem equatorial brasileira.
A “questão do petróleo”
Além de pescadores da comunidade, funcionários da Marinha, Ibama e ICMBio acompanhavam o discurso de seu Júlio, realizado no dia 22 de abril. Em determinado momento, ele se dirige aos colegas de pesca e questiona: “E nessa questão do petróleo, se der algum derramamento? Só vai ganhar alguma coisa quem tiver com tudo regular”.
A “questão do petróleo” é algo que vem assombrando os pescadores do litoral amapaense. Ao se andar por Oiapoque, que fica no centro de tudo isso, ouvem-se os burburinhos sobre a possível exploração de petróleo pela Petrobras. Mas, assim como na maioria das comunidades onde acontecem grandes empreendimentos na Amazônia, o receio dos danos é a única certeza que a população conhece.
No centro comercial do município, encontrei Claúdia Barbosa. Ela enche de gelo a carcaça de geladeira que usa para armazenar os caranguejos que vende aos fregueses fiéis que ligam cedo encomendando os melhores caranguejos da cidade. Cláudia e o marido possuem uma pequena embarcação e pescam caranguejos que ela vende diariamente no centro.
Assim como eles, Oiapoque possui centenas de pescadores que trabalham apenas na região do mangue. Como todo o litoral amapaense é composto por praias de lama, e não de areia, como na maioria do litoral brasileiro, eles temem os efeitos de um possível acidente. “Se vazar alguma coisa, não é como no Nordeste, que pode juntar a areia e limpar. Aqui nunca, nunca, só Deus pra limpar. Porque é sedimento, é barro, ele vai se misturar, não tem como limpar”, explica seu Júlio.
Cláudia questiona a situação dos trabalhadores que, como ela, dependem da pesca para sobreviver. “Se tiver mesmo esse derramamento de óleo, como é que vamos sobreviver? Muitos já nascem trabalhando no peixe. E aí? Emprego, aqui não tem. E quem só sabe viver desse ramo? Muitos são analfabetos, digamos assim. Como é que vai arranjar um emprego para trabalhar? Como é que vai sustentar a sua família para sobreviver?”
Isonildo Gomes também é pescador e mora na Vila do Taparabu, cerca de uma hora de barco de Oiapoque. Assim como o resto do litoral do estado, a comunidade é cercada por manguezais. “Ali, se houver derramamento [de óleo], vai prejudicar muitas espécies, não só o caranguejo. É um ecossistema muito grande”, afirma.
Toda a vila, assim como a maioria dos moradores de Oiapoque, sobrevive da pesca artesanal, que movimenta a maior parte da economia da cidade. O modelo é caracterizado pelo trabalho manual, em sua maioria em uma cadeia produtiva familiar, em que as redes são puxadas manualmente e os barcos são menores. De acordo com os levantamentos realizados pela colônia de pesca junto à Secretaria de Pesca do município, a atividade movimenta 70% da economia local.
“Eu tenho um barquinho. A nossa função é chegar aqui, abastecer o gelo, o óleo diesel, pago a despesa, que é o rancho, aí a gente ajeita os funcionários da gente – comigo são três –, aí tem o vale que tem que dar pra eles irem. O vale que a gente chama é o dinheiro extra que a gente dá pra eles irem, outros pescadores. Já vai pro mar, a gente passa de 14, 15 dias”, contabiliza Isonildo, que trabalha com o filho e mais três funcionários. Seu irmão também possui uma embarcação e sua esposa é “marisqueira”.
A cadeia produtiva gera trabalho: desde os ajudantes de pescadores que saem no barco para pescar até quem fileta o peixe para vender no mercado, tornando a pesca e os serviços associados a ela uma alternativa para muitas pessoas que deixam de trabalhar com a exploração de garimpo e madeira ilegal na região.
Segundo seu Júlio, um pescador gasta no mínimo R$ 6 mil antes de sair para o mar, movimentando toda a economia local: “Não é só a venda do peixe. Ele compra o óleo, compra o gelo, paga o adiantamento ao pescador. Pescador não embarca, não vai se você não adiantar R$ 300, 400, 500 pra cada um. Tem que comprar o rancho, a mercadoria. Tem barco que leva R$ 12, R$ 15, R$ 20 mil de mercadoria pra comer pra ele passar 20 dias”.
Pressão política a favor da exploração
Para seu Júlio e os pescadores da colônia, o poder público não está preocupado com o que possa acontecer à região. “Eles estão em um conto de fadas, só pensam nos royalties”, afirma. Os royalties são uma compensação financeira paga à União, aos Estados e aos municípios pelas empresas produtoras de petróleo e gás natural no Brasil como forma de compensar a sociedade pela utilização desses recursos, que não são renováveis.
Entramos em contato com o senador pelo Amapá Randolfe Rodrigues (sem partido). Atual líder do governo, ele vem sendo um dos maiores defensores do início das pesquisas para a possível exploração de petróleo no estado, posição que gerou crise com o partido em que estava e levou a sua saída da Rede.
Por meio de sua assessoria, ele afirmou que faltam informações sobre a atual situação, o que leva parte dos moradores a acreditar que a exploração já aconteceria de imediato, quando o que está em debate é uma perfuração exploratória. “Essa perfuração que está sendo discutida agora não é a exploração do petróleo ainda, é a exploração para poder saber se tem ou não petróleo na costa aqui do estado. Primeiro nós queremos ter o direito de saber. O povo do Amapá precisa ter o direito de saber se tem ou não petróleo”, afirma.
Apesar de Randolfe afirmar que a decisão do Ibama não ouve a população amapaense, nas últimas audiências públicas realizadas no Amapá sobre o tema, os representantes do senador ouviram apenas empresários e políticos e se retiraram antes das falas da população, em sua maioria contrária à exploração. O senador defende que, caso o governo federal opte pela não autorização da exploração, o estado do Amapá receba uma contrapartida.
Para Janaína Calado, pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento Territorial Sustentável, projeto de extensão da Universidade do Estado do Amapá (Ueap) que desde 2018 busca compreender a percepção dos moradores do Amapá sobre a exploração de petróleo e sobre os ainda pouco estudados recifes da Amazônia, o grande problema é que no momento não existe ampla consulta popular nem a apresentação de um estudo de impacto ambiental robusto o bastante para dar segurança ao empreendimento.
“Nosso principal problema aqui na foz do Amapá é a falta de conhecimento básico sobre essa região. Se bem realizada, planejada e com ampla participação popular, a iniciativa pode, sim, trazer benefícios econômicos ao estado”, diz. Mas a pesquisadora chama atenção para o fato de que o impacto econômico seria somente de royalties, sem a geração de empregos diretos para o Amapá.
Até o momento, não existe consulta popular sobre o tema por parte do governo nem investimentos em pesquisas na região. Nas audiências públicas realizadas pela Petrobras em Oiapoque, houve mobilização contrária ao início das pesquisas, tanto pelos pescadores quanto pelos indígenas da região.
Em maio deste ano, foram realizadas mais duas audiências públicas – uma em Oiapoque, no dia 19 de maio, pela Assembleia Legislativa do Amapá. Outra em Macapá, pela Câmara de Vereadores da capital, em 26 de maio.
Em Oiapoque, pescadores afirmaram que a audiência foi um “palanque de políticos”, em que os pescadores não tiveram direito a fala. Em Macapá, ativistas presentes no encontro por conta própria disseram não ter sido convidados. Ao ser questionado pelos manifestantes sobre a falta de convites para a sociedade civil participar da audiência, o vereador Marcelo Dias (Solidariedade), presidente da Câmara e autor da audiência, afirmou que eles não tiveram tempo de enviar convites para os movimentos sociais e a universidade participarem do debate.
Outra questão levantada pela população de Oiapoque é a ausência de divulgação sobre as audiências realizadas pela Petrobras e, mais recentemente, pela Assembleia Legislativa do Amapá no município. “Se tem reunião, a gente nunca sabe ou é no horário que a gente tá trabalhando e não consegue participar pra gente entender melhor, né?”, diz Cláudia. “Mas mesmo a gente entendendo melhor e sendo contra, sempre vai acontecer. Porque o que vale hoje em dia é o capital. Ele tá acima de tudo, então sempre vence e a população que sofre. Eu, como uma cidadã daqui de Oiapoque, vejo que isso vai prejudicar nosso trabalho.”
Seu Júlio vem realizando por conta própria um levantamento entre os trabalhadores da colônia de pescadores sobre os impactos que já vêm ocorrendo por causa de pesquisas para possível exploração de petróleo na região. Vários pescadores têm relatado o aparecimento de peixes que não são da área e mudanças no curso das águas.
Além dos peixes, seu Júlio conta que recebeu relatos de que tartarugas marinhas têm chegado mais perto da margem fora do período de desova e que várias têm rasgado as redes de pesca. Há pescadores que já tiveram redes rasgadas por raias-jamantas. A pesquisadora Janaína Calado afirma que não há estudos que acompanhem esse processo ou que monitorem as mudanças no fluxo das águas.
Segundo o Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), existem ao menos 7.000 pescadores artesanais no estado. O instituto pondera, porém, que o número é subestimado. Apesar da importância socioeconômica da atividade para o estado, ela é pouco valorizada pelos órgãos responsáveis, tanto pela ausência de investimentos para a produção quanto pela formação e pesquisa.
A colônia de pesca de Oiapoque afirmou ter solicitado diversas vezes apoio do governo do estado e da Ueap para realização de pesquisas na região da foz do Amazonas, porém nunca foi atendida.
O desastroso histórico da exploração no Amapá
O Amapá é o estado mais preservado do Brasil, com a maior cobertura florestal intacta, possuindo quase todos os mais importantes ecossistemas brasileiros: mangues, campos, campinas, cerrado, florestas de terra firme, florestas de várzea e florestas de igapó. Apesar de sua grande importância socioambiental, é constantemente pressionado pela classe política e empresarial para explorar seus recursos naturais.
Um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o historiador Higor Pereira fez um levantamento do histórico de grandes empreendimentos no estado. Ele afirma que desde que o Amapá deixou de ser território, em 1943, as políticas de desenvolvimento são pautadas em grandes projetos econômicos a partir de exploração ambiental.
“O que todos esses empreendimentos trouxeram efetivamente de bom pro Amapá? Pagamos uma energia caríssima a troco da destruição ambiental e social causada pelas hidrelétricas; comunidades tradicionais são perseguidas há décadas pela Amapá Florestal e Celulose e agora pelos sojeiros; a Icomi [empresa mineradora que por mais de 40 anos extraiu e vendeu manganês no estado] extraiu um valor incalculável de riquezas do Amapá e no fim não ficou nada pro povo. A verdade é que todos os políticos que estão chorando por conta da decisão técnica do Ibama em impedir a exploração do petróleo no Amapá sabem muito bem que o dinheiro não vai ajudar o povo do Amapá. Nossa história tá aí pra provar”, diz.
Ele se refere à decisão do Ibama do dia 17 de maio que negou a licença para a Petrobras afirmando, entre outros pontos, que a empresa não apresentou garantias para a proteção da fauna local em caso de acidente. O debate sobre exploração de petróleo na região tem dividido o governo, gerando atritos principalmente entre os ministérios de Minas e Energia e o de Meio Ambiente.
A Petrobras aguardava apenas essa autorização para iniciar a perfuração de teste em um ponto a cerca de 175 km da costa amapaense. Em nota divulgada à imprensa, a empresa informou que vai recorrer e que “atendeu rigorosamente todos os requisitos do processo de licenciamento e todos os recursos mobilizados no Amapá e no Pará para a realização da Avaliação Pré-Operacional (simulado para testar os planos de resposta à emergência) foram feitos estritamente em atendimento a decisões e aprovações do Ibama”.
Em conversa com jornalistas na viagem que fez a Hiroshima, no Japão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que vetará qualquer intenção de explorar petróleo na foz do Amazonas caso haja risco real ao meio ambiente. Porém ponderou dizendo que acha “difícil, porque é a 530 quilômetros de distância da Amazônia”. Lula ainda disse que é preciso envolver as comunidades indígenas que vivem na região.
Em nota divulgada nas redes sociais, a Articulação dos Povos Indígenas e Organizações do Amapá e Norte do Pará (Apoianp) disse que, sem que sejam avaliados impactos que podem ser desastrosos e sem compromisso com a consulta prévia aos povos indígenas, é contra a exploração do petróleo na foz do Amazonas e que apoia a decisão do Ibama de negar a licença para a Petrobras.
*Esta reportagem é resultado das Microbolsas Petróleo e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública em parceria com a WWF-Brasil. A 16ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os blocos de exploração na região amazônica e seus impactos socioambientais.