As palavras firmes são de Dona Celeste, uma das pescadoras mais antigas do litoral piauiense. Uma mulher de olhar forte, corpo franzino e palavras certeiras. Prestes a completar 70 anos, é uma das lideranças mais ativas do movimento das pescadoras e pescadores artesanais do Piauí. Foi com esse grito de força e resistência, que um grupo de mais de 100 pescadores e pescadoras iniciaram o Seminário “Transição Energética e os Impactos das Renováveis nas Comunidades Tradicionais Pesqueiras: Maranhão, Ceará e Piauí”, na Praia da Pedra do Sal, em Parnaíba, litoral do Piauí.
O evento, organizado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) dos Regionais do Ceará/Piauí, Maranhão e o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP, teve início na última terça-feira (28) e encerrou nesta quinta-feira (31). O foco do seminário foi debater coletivamente sobre os impactos dos empreendimentos de energias renováveis nas comunidades tradicionais pesqueiras dos três estados e construir estratégias de resistências a partir das comunidades.
“Há dois anos estamos dialogando para fazer um trabalho em conjunto, sobre algo em comum que vem impactando as comunidades, que na época eram apenas os parques eólicos, por conta dessa transição energética. O que estamos dizendo é que não está tendo uma transição energética, mas uma transação energética, no qual muitas empresas e governos têm se utilizado das comunidades para gerar recursos para eles mesmos. Muitas comunidades ficam vulneráveis, impactadas e os governos entregando os territórios para multinacionais e empresas locais, que acabam gerando sérios conflitos”, afirma Gilberto Lima, agente da CPP no estado do Maranhão.
O Seminário aconteceu no Ginásio Poliesportiva da Pedra do Sal, única praia pertencente ao município de Parnaíba, de frente para o mar e para os muitos aerogeradores que há mais de 10 anos vem modificando a paisagem local e a vida das comunidades pesqueiras. Por lá, são 69 torres instaladas, muitas delas nos quintais das casas dos moradores, como é o caso do seu Zé Bureta, que dorme e acorda ao som dos aerogeradores instalados a menos de 400 metros da sua casa. Essas turbinas gigantes compõem o Complexo Eólico Delta Piauí, que sozinho, poderia abastecer pelo menos 40 mil casas, mas nenhuma delas está na Pedra do Sal. Ao contrário disso, os moradores têm reclamado do aumento da tarifa de energia.
“Eu costumo dizer assim a gente mora dentro de um restaurante e come a comida mais cara do mundo, que a gente mora onde gera um monte de energia aí e a gente tem uma energia caríssima dentro da comunidade da gente e não tem benefício nenhum para ninguém”, afirma seu Zé Bureta, em entrevista ao podcast Rádio Novelo.
O que acontece na Pedra do Sal, infelizmente, não é uma exclusividade. Os mesmo problemas se repetem nas comunidades das faixas litorâneas do Ceará e Maranhão. Os relatos mostram a dimensão. “Durante o dia até que vai, porque os barulhos se misturam, mas a noite, nãon tem aquele silêncio. É como se tivesse um avião subindo e descendo ao mesmo tempo”, afima Lisolete Lima, pescadora da da praia de Itaiba, município de São Gonçalo do Amarante/CE, que convie com aerogerados dia e noite. Também no Ceará, a pescadora Bina fala de outro problema. “A minha indgnação grande é porque, no Guajirú, atravez dessas eólicas em terra, hoje não se encontra mais o peixe e polvo que a gente pesca na maré”, desabafa.
Bina, pescadora
Lisolete, peswcadora
Com ventos fortes e condições climáticas favoráveis, a busca por dinheiro tem falado mais alto que a vida nessas comunidades, que resistem. “A força das comunidades – Piauí, Ceará e Maranhão – pela defesa da vida nas comunidades… sobre petróleo, minério de carbono e energias renováveis que vem tirando a vida das comunidades pesqueiras. Nossa fonte de vida e renda vem dos manguezais, por isso estamos hoje aqui”, relata Dona Celestina.
Em terra, mais de 250 projetos já estão instalados nos três estados
Um estudo articulado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), em parceria com pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, fez um diagnóstico do cenário de produção e infraestrutura energética no Piauí, Ceará e Maranhão. Ao todo, o mapeamento identificou 255 projetos existentes e outros 58 em planejamento de expansão nos três estados.
O Ceará lidera esse ranking, com 98 projetos de energia eólica e 22 de energia solar já instalados. O Piauí, vem logo em seguida, com 87 projetos de eólicas e 33 de energia solar. Já no estado do Maranhão, são 15 projetos de energia eólica e, até o momento, nenhum de energia solar. Os dados foram captados junto às bases de dados oficiais dos estados e do governo federal.
O estudo mostra ainda que a expansão energética na região tem invadido territórios quilombolas, indígenas e unidades de conservação, colocando em risco os modos de vida ancestrais e a biodiversidade local. Mais de 3.959 km de linhas de transmissão já cortam os territórios. “Muitas dessas expansões acontecem sem consulta prévia adequada às comunidades afetadas, o que gera conflitos e prejudica os direitos das populações tradicionais “,. afirma o documento.
O mar na mira: blocos de eólicas offshore/mar na extensão litorânea dos três estados aguardam decisão para instalações
Ainda durante o Seminário, Kerlem Carvalho, nativa de comunidade pesqueira do Maranhão e oceanógrafa do Instituto Internacional Arayara, apresentou o Monitor Oceano, uma iniciativa inovadora criada para proteger os ecossistemas marinhos dos impactos da indústria de petróleo e gás. Utilizando dados geoespaciais de fontes governamentais e de autarquias responsáveis, o Monitor Oceano oferece uma análise detalhada e interativa das áreas mais sensíveis e importantes da zona costeira e marinha do Brasil sobrepostas a projetos de exploração e produção de petróleo, o que coloca em risco suas subsistências.
De acordo com Kerlem, o Instituto está trabalhando na coleta e inserção de dados sobre Energias Renováveis, para posterior interpretação e identificação de quais áreas da costa marinha brasileira estão sobrepostas com projetos de energias renováveis e quais os possíveis impactos disso.
Embora ainda não esteja finalizado, o monitor já apresenta um cenário preocupante, com a presença de blocos de energias renováveis em toda a costa do Piauí e Ceará, e parte do Maranhão. Sua implementação efetiva depende apenas da aprovação do Projeto de Lei (PL) 576/2021, atualmente em discussão no Senado, que visa regulamentar a implantação de usinas eólicas offshore (no mar) no Brasil.
Contudo, a proposta legislativa guarda em sua formulação final uma perigosa contradição, devido aos denominados “jabutis” e seus impactos significativos, que tem gerado uma série de críticas de organizações socioambientais e de movimentos da pesca artesanal, entre eles as organizações inseridas no GT Mar, coletivo da sociedade civil que integra a Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional. O objetivo do grupo é evitar que o PL seja aprovado da maneira como está a redação atual.
Pesquisador prevê impactos irreversíveis na água com produção de hidrogênio verde
João Paulo Centelha, professor e pesquisador da Universidade Estadual do Piauí, levou às comunidades informações precisas sobre a questão do Hidrogênio Verde. “A questão é: se temos energia disponível de fontes renováveis, qual o sentido de produzir hidrogênio, se é outra fonte de energia?”, questiona o professor que seguiu explicando que para gerar hidrogênio o gasto com energia é maior que é disponibilizada, ou seja, disse ele, “se gasta mais energia para produzir menos energia na forma de hidrogênio”.
O Geógrafo considera que a cobiça dos países que estão com seus recursos de energia escassos, é o motivo maior para produção do hidrogênio que é uma fonte de energia que pode ser transferida geograficamente, sem necessidade de linhas ou redes de transmissão elétrica, como permite o sistema integrado de energia no Brasil.
Para João Paulo, o fato de o combustível possibilitar o transporte para qualquer lugar do mundo, como está previsto a partir do Piauí, para a Europa de navio, é o ponto chave. “A racionalidade por trás da produção de hidrogênio envolve disponibilizar essa energia, que é renovável, gerada em solo nacional, para outros lugares do planeta, com a finalidade de alimentar os países que já estão com seus recursos naturais em colapso, como é o caso de países europeus”.
110 Comunidades Tradicionais e Movimentos Sociais denunciam Danos Causados por Eólicas Offshore no Brasil
“Somos entes comunitários, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, que lidamos, de diferentes modos, com os impactos e danos gerados pelos parques eólicos na região nordeste e no sul do país. Danos que vão desde a perda da terra, do território e da água, produção de pobreza, agravos das vulnerabilidades sociais que afetam mulheres, juventudes e crianças, até os prejuízos à saúde mental das pessoas. Por isso, e ainda, por considerar suas responsabilidades políticas pelo bem-estar das populações e povos deste país, reivindicamos a legitimidade e o sagrado direito de nos posicionar e sermos ouvidos e ouvidas por quem vota as questões diretamente ligadas às nossas vidas, como a corrida desenfreada da indústria da energia sobre os territórios de terra e de mar”, destaca a carta escrita por mais de 100 organizações sociais e comunidades tradicionais pesqueiras no Brasil.
A carta denuncia os riscos e ameaças na qual as comunidades estão expostas em função do avanço desses projetos. um dos principais problemas do PL 576/2021 é a inclusão de medidas que aumentam as emissões de gases de efeito estufa, pois favorecem a ampliação do uso de combustíveis fósseis, como carvão e gás natural.
A inclusão desses temas durante a votação do PL na sua passagem pela Câmara dos Deputados, contradizem o objeto proposto pelo projeto de lei, que visa promover fontes renováveis, bem como o conceito de uma transição energética sustentável. Os ativistas acreditam que fomentar o carvão e o gás, que são fontes fósseis altamente poluentes – vai diretamente na contramão das ações globais de descarbonização e enfrentamento da crise climática, pois perpetua a dependência de recursos que contribuem significativamente para o aumento da temperatura do planeta e a degradação socioambiental.
Seminário termina com apresentação de demandas ao poder público
Mesa “Atuação do poder público e demandas das comunidades”, que aconteceu no Auditório da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – em Parnaíba, foi momento que as comunidades apresentaram ao poder público, suas demandas. Estavam presentes representações do Ministério Público Federal(MPF-PI), Defensoria Pública do Estado do Ceará e ICMBio – Brasília.
Nos relatos dos pescadores e pescadoras (CE,PI,MA) foi colocado que as usinas eólicas em terra e propostas de usinas por mar estão gerando mais violações dos direitos dos povos tradicionais das águas, além dos impactos para a sociobiodiversidade e ampliação dos conflitos.
Na ocasião, o procurador Saulo Linhares, do MPF-PI, falou que existe uma atuação do MPF para garantir o direito das comunidades tradicionais no PI, bem como é possível fazer atuações com outros órgãos de forma integrada, citando o exemplo de atuações em conjunto (DPU, MPE, ICMBio, SPU) e outros. Ações que também podem ser feitas em articulações com outras câmaras do Ministério.
Igor Matos Soares, coordenador Geral de Impactos do ICMBio, apresentou como acontecem os processos de licenciamentos ambientais de usinas eólicas, bem como os impactos gerados para comunidades, meio ambiente (flora e fauna). Além de trazer os impactos que poderão ser gerados com as instalações de usinas eólicas no mar brasileiro.
As comunidades pediram que seja feito uma atuação mais presente e firme para o bem-viver nos territórios pesqueiros. Como encaminhamento, ficou de ser sistematizadas as demandas das comunidades que serão encaminhadas para os diversos órgãos públicos conforme suas competências, bem como fazer uma articulação em rede das comunidades dos três estados para fazer os encaminhamentos e incidências após o seminário.
“Eles não vão parar, mas nós não vamos desistir”, afirma Mentinha, pescadora do Ceará
Se, por um lado, as ameaças são muitas e parecem avançar ainda mais sob a vida e memória desses povos; por outro lado, a resistência também avança. “No meu ponto de vista, não vai parar por aí, mas também nós não vamos desistir. Ou sim, ou não. O que vale é a gente lutar para defender o nosso território, dê no que dê”. afirma dona Maria do Livramento Santos, conhecida como Mentinha Pescadora, de Acaraú, no estado do Ceará.
A organização coletiva dos pescadores e pescadoras artesanais é o que tem garantido a existência dos territórios e manutenção dos seus modos de vida. “Momentos como esses, para quem entender, são de grande importância para toda a comunidade. Porque cada um leva um que ouviu, leu e sentiu. As falas que foram feitas é o que vão levantar pilares para que a gente não possa desistir da luta”, afirma Mentinha Pescadora.
A ideia de um desenvolvimento que passa por cima da vida dos povos e seus territórios há muito ameaça essas comunidades em todo o país. Mas como bem lembra Dona Celeste, a luta pela vida é permanente. “Ser pescadora hoje é difícil, porque a gente tem que estar nessa corrente, se deparando com todas essas coisas, com petróleo, energias renováveis… é muito grave, porque eles dão e, ao mesmo tempo, matam nossas vidas no território”, afirma.
Sobre o Seminário
O Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) – os Regionais Maranhão, Ceará e Piauí, o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e outros movimentos sociais, realizaram o Seminário “Transição Energética e os Impactos das Renováveis nas Comunidades Tradicionais Pesqueiras: Ceará, Piauí e Maranhão”.
O evento ocorreu entre os dias 28 e 31 de outubro de 2024, na Quadra Poliesportiva da Praia da Pedra do Sal, em Parnaíba, Piauí. O evento foi uma oportunidade para reunir pescadores e pescadoras artesanais, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, além de pesquisadores e entidades ligadas ao tema, para discutir os impactos dos projetos de energia renovável, incluindo parques eólicos onshore e offshore e a produção de hidrogênio verde, que afetam diretamente os territórios pesqueiros da região.
Com o objetivo de fortalecer o diálogo e construir estratégias de resistência frente aos impactos socioambientais, o evento também se propõe a dar voz às comunidades mais atingidas. A presença de cada participante é essencial para consolidar a defesa dos direitos das comunidades pesqueiras tradicionais e fortalecer o debate em prol de soluções justas e inclusivas para todos os envolvidos e envolvidas.
Fonte: ocorrediario.org