Violências praticadas pela prefeitura contra as populações tradicionais do local têm sido recorrentes
Assessoria de Comunicação do CPP
Na manhã de terça-feira (17), o pescador Marcos de Almeida foi surpreendido quando preparava para iniciar o seu dia de vendas na barraca que tem na praia de Ponta de Castelhanos, localizada na Ilha de Boipeba, em Cairu (BA). Funcionários da prefeitura começaram a desmontar a estrutura da barraca que havia sido criada pelo pescador há quatro anos para ter uma renda extra durante a alta estação de turismo. A ação da prefeitura causou revolta e surpreendeu o pescador porque a sua barraca foi a única que foi retirada do local.
“Os fiscais vieram na terça, como se tivessem raiva de mim, como se estivessem com implicância. Eles chegaram dizendo que iam derrubar a barraca. Falei que sou cidadão de bem. Não quiseram ouvir nada, colocaram a marreta e derrubaram”, lamenta Marcos. O trabalho que era realizado no ponto comercial destruído pelos servidores públicos municipais colaborava com a renda de 10 pessoas, entre familiares e funcionários que trabalham junto com Marcos na barraca e na balsa flutuante onde ele vende drinks.
Desde o início da barraca em 2020, Marcos tentou ser cauteloso na construção do empreendimento. Na hora de edificar, optou por fazer uma estrutura com esteiras e que pudesse ser móvel. No lugar, ele vendia pasteis, petiscos e drinks.
Recentemente o pescador havia feito uma pequena ampliação no local para estruturar melhor a cozinha. Após a mudança, na semana passada a prefeitura tentou notificar o barraqueiro ameaçando que se ele não retirasse a barraca, a mesma seria retirada pela prefeitura e ele pagaria ainda uma multa de R$ 10 mil. Na ocasião ele se recusou a assinar a notificação e o próprio funcionário da prefeitura assinou como testemunha.
“Desde que eu coloquei o meu ponto para trabalhar, o administrador de Cova da Onça disse que eu não poderia colocar barraca fixa e eu respeitei isso. Não construí uma barraca, coloquei uma cozinha. Sou nativo daqui da ilha, eu acho uma coisa dessa um absurdo, porque preciso trabalhar, sustentar a minha família. A gente vê muita coisa errada, mas se a gente tenta fazer a coisa certa... Ofereci emprego para os meninos, levanto 5hs para trabalhar. Trabalham umas 10 pessoas comigo. Trabalha a minha família e ainda mais 2”, relata Marcos.
A derrubada da barraca impactou nas vendas de Marcos. No local estava localizado os equipamentos onde ele fazia pasteis e outros petiscos. No momento, ele apenas consegue vender os drinks e bebidas. Outra preocupação de Marcos é com os seus apetrechos de cozinha que estão sem uma estrutura que os proteja.
“Não quero guerra com ninguém, mas aqui nenhum barraqueiro tem licença da prefeitura. Mas a lei é para um e para outros, não? A minha cozinha não consegui retomar. Só a mesa de drinks. Corre o risco de eu perder as minhas coisas. Eles não deram satisfação de nada”, critica Marcos.
O misto de revolta e preocupação de Marcos tem a ver com o fato da barraca funcionar de maneira temporária, apenas na primavera e verão, quando a ilha recebe mais visitantes. Além disso, ele é uma espécie de guardião do local, cata o lixo deixado pelos turistas e cuida do lugar. “Tem gente querendo reconstruir a minha barraca junto comigo, mas se eu fizer isso, eles vão destruir de novo. Antes eu tinha um lugar adequado, um ambiente tranquilo, agora está tudo desorganizado”, reclama.
Violências recorrentes
A situação vivenciada por Marcos tem atingido muitos dos nativos das ilhas do município de Cairu, na Bahia, uma área formada por um arquipélago que têm sido cobiçado para a construção de empreendimentos turísticos e imobiliários, que colocam em risco a permanência das populações tradicionais no local. A restrição de acesso aos locais acessados pelas comunidades pesqueiras como manguezais, praias e corais têm sido uma constante entre os moradores.
A comunidade pesqueira de Garapuá, por exemplo, foi vítima de ações de despejo por parte da prefeitura, além de ter sido alvo de matérias racistas de um dos jornais de maior circulação no estado, acusando a comunidade de não ser quilombola. Outro caso recente diz respeito à construção do complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos da sociedade Mangaba Cultivo de Coco LTDA, que quer construir duas pousadas com aproximadamente 3.500 metros quadrados, além de 69 lotes para residências de veraneio, parque aquático, píer, aeródromo e um campo de golfe. O empreendimento ocupará cerca de 20% da área da ilha e prevê o desmatamento de 16.507.752 metros quadrados de vegetação nativa.
No momento o empreendimento está parado pela Secretaria de Patrimônio da União que apontou vícios no processo para implantação do projeto e anunciou que será feita uma suspensão administrativa cautelar da liberação do regime de ocupação da área. Mesmo suspenso, lideranças tiveram que fugir da ilha devido às ameaças que estavam sofrendo.
“A prefeitura está sempre do lado dos empresários contra as comunidades quilombolas daqui. Ela (prefeitura) diz que as comunidades não são quilombolas. Em Cova da Onça, a prefeitura defende o empreendimento Mangaba Cultivo de Coco e é uma das responsáveis por Raimundo Siri (liderança do MPP), hoje estar corrido da comunidade e não poder ir ao local” relata o agente de pastoral do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras artesanais (CPP), Antonio Junior, que acompanha as comunidades da região.
Ele também relata situações de assédio nas outras comunidades e tentativas de criar conflitos. “Na comunidade de Garapuá, eles (prefeitura) jogam as pessoas contra as lideranças, colocando-as em situações que acabam fragilizando a luta das comunidades. Eles são favoráveis a todo empreendimento que tem, e contrários às comunidades”, denuncia.
Ele explica que os gestores são grandes empresários que também têm terras nas ilhas e por isso acabam defendendo os empreendimentos. “Eles querem ditar como as comunidades têm que agir. Dizem que são os gestores e que têm o poder de decidir pela vida da comunidade. Então há uma situação muito ruim de perseguição às lideranças, de expor, de espalhar mentiras sobre lideranças, junto com outros poderes públicos”, denuncia Antonio Junior.
Enquanto isso, Marcos Almeida tenta seguir com a vida, evitando conflitos com as autoridades e preocupado com os impactos da ação mais recente da prefeitura. “Se eu vender ou não vender, tenho as minhas despesas. Cada dia que eu acordo, fico pensando nisso”, lamenta.